Por Danilo Blank
Professor titular do Depto. de Pediatria de Faculdade de Medicina da UFRGS, secretário do Depto. Científico de Segurança da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP)
Nestes tempos tão carregados de violência, em que candidatos a cargos públicos chegam ao despudor e à baixeza de se apresentar posando como quem aponta armas para fuzilar muitos supostos inimigos, é esperançoso ver na alta literatura médica uma grande onda de conscientização pelo desarmamento da sociedade*, felizmente seguida por grande parte dos pensantes e pela imprensa democratizante. Mas foi estarrecedor ver no caderno DOC, habitualmente povoado por mentes progressistas, um chamamento ao atraso como o artigo Armas para o Bem. Carente de qualquer embasamento acadêmico, tão eivado de distorções de estatísticas e perspectivas desvirtuadas da gravíssima questão da mortalidade por armas de fogo, além da abordagem pedestre de um assunto tão sério, trata-se, na verdade, de uma versão expandida dessas mensagens irresponsáveis que espalham mentiras na internet. Mais trágico foi termos isso publicado uma semana antes do desfecho de um processo eleitoral que ameaçou a segurança na sociedade brasileira.
Para começar, o título patético! Dez entre 10 pesquisadores de respeito afirmam que a posse de armas de fogo em si tem correlação direta com as taxas totais de homicídios e suicídios numa determinada comunidade, assim como com a proporção de homicídios e suicídios que envolvem essas armas. Armas de fogo são primordialmente objetos da violência e do medo. Logo, são – sim – objetos do mal!
O autor queixa-se de que o Estatuto do Desarmamento restringiu drasticamente o acesso às armas de fogo no Brasil, o que – para o bem de todos – é verdade, mas em seguida afirma sem base nenhuma que armas legais, manuseadas por pessoas supostamente treinadas, dificilmente estão envolvidas em delitos. Em recente artigo publicado na revista médica Jama, um extenso grupo de especialistas diz que, apesar de ser um desafio correlacionar cientificamente a disponibilidade de armas de fogo com as mortes por elas causadas, os dados disponíveis permitem tal conclusão; ainda que ressaltem que em países com grande envolvimento com tráfico de drogas e armas ilícitas, como é o caso do Brasil, a relação entre o acesso às armas e os homicídios é mais clara do que com os suicídios e ferimentos não intencionais, outras duas enormes preocupações do ponto de vista da saúde/segurança pública.
Citar a Suíça, como costumam fazer os detratores do Estatuto do Desarmamento, é um descabimento, dadas as imensas diferenças culturais e socioeconômicas que a separa do Brasil. É consenso entre especialistas que analogias entre países tão díspares não têm serventia para embasar discussões sobre leis acerca de acesso a armas de fogo. Quem sabe, então, considerar o Japão, que é o país com mais restrições às armas de fogo e as menores taxas de violência associadas a elas? Além disso, não esquecer de que os baixos índices de homicídios por armas de fogo entre os suíços – mas atenção, não os suicídios e os acidentes! – devem-se às altas restrições no seu licenciamento.
Outra suposição sem embasamento empírico: o autor diz acreditar que a concessão de porte de arma a cidadãos que cumpram certos requisitos retrairia os bandidos pela dúvida em relação à vítima estar ou não armada. Ao contrário, veem-se mais casos de vítimas baleadas ou tendo sua arma roubada ao tentarem reagir do que o revés para o bandido; contudo, isso teria que ser estudado com métodos adequados.
Mas a maior falácia do texto em questão é citar o Mapa da Violência 2016, afirmando exatamente o oposto do que ele mostra! Como se vê no quadro publicado no início deste texto, a partir do Estatuto do Desarmamento, o ímpeto anterior da escalada homicida por armas de fogo foi drasticamente abafado. Segundo Waiselfisz, autor da obra, ainda que as políticas brasileiras de desarmamento não tenham conseguido reverter a direção ascendente da curva de homicídios, possivelmente por aplicação inconstante e falta de ações complementares, conseguiram sofrear a tendência do crescimento acelerado das mortes por armas de fogo. Quer dizer, o Brasil foi capaz de comprovar na prática o que todos os especialistas não cansam de repetir: quanto menos armas na comunidade, menos homicídios e ferimentos causados por elas! E mais: os dados permitem inferir que, se o referendo pela proibição total da comercialização de armas de fogo tivesse sido aprovado, mais mortes teriam sido evitadas, especialmente entre os jovens.
O restante do artigo traz delírios acerca das condições de aprovação do Estatuto do Desarmamento, com a sugestão de que não tenham sido seguidos os ritos democráticos, assertivas mentirosas sobre sua eficácia, comentários inconsistentes sobre projetos para flexibilizá-lo e a interpretação equivocada do infeliz desfecho do referendo de 2005. Na verdade, trata-se de teses mais do que maldosas, em vista do consenso global dos especialistas pelo controle do acesso às armas de fogo.
No final, dizendo esperar que os novos governo e Congresso aprovem o porte de armas, o autor usa o inapropriado exemplo de seguranças privados, que são armados, mas que têm nada a ver com os riscos do armamento generalizado da população. E ainda emprega o chavão de que armas são inanimadas, esquecendo-se de que, se são as pessoas que matam, são as armas de fogo que lhes permitem matar muito mais.
* O espaço não permite o aprofundamento da questão, mas vale a pena ler os artigos de Frederick Rivara (bit.ly/zhsafe1) e de John Maa e Ara Darzi (bit.ly/zhsafe2) publicados há dois meses respectivamente nas prestigiosas revistas médicas Jama e The New England Journal of Medicine e seguir as referências que os embasam.