Na madrugada de 8 de maio de 2005, três jovens conversavam em frente a um bar na Cidade Baixa, em Porto Alegre. A data marcava os 60 anos do fim do Holocausto. Mas permaneceria na memória dos rapazes por outro motivo. Em poucos segundos, foram cercados e atacados a facadas, socos e pontapés.
O quipá que usavam permitiu que fossem identificados pelo grupo em fúria.
Após dois dias de julgamento, na noite desta quarta-feira (19), três dos 14 réus foram condenados por tentativa de homicídio triplamente qualificado, por motivo torpe (discriminação racial), meio cruel e recurso que dificultou a defesa das vítimas. As penas somam 38 anos e oito meses de prisão.
Thiago Araújo da Silva e Laureano Vieira Toscani foram condenados a 13 anos de prisão, e Fábio Roberto Sturm, a 12 anos e oito meses de detenção.
Laureano cumprirá a pena em regime inicial fechado e não poderá recorrer em liberdade. Segundo a Justiça, haveria risco de fuga por ele morar nos Estados Unidos. Ele saiu algemado da sessão. Thiago e Fábio poderão recorrer livres da sentença. Para a acusação, o trio fazia parte de um grupo neonazista.
No júri, os réus negaram a participação no crime. Para o Ministério Público (MP), o crime foi cometido por discriminação. A promotora Andréa de Almeida Machado relatou que uma das vítimas tem medo de voltar a usar o quipá.
— Estamos aqui reunidos para lançar um juízo sobre o ódio, a intolerância, a discriminação — afirmou o assistente de acusação João Batista Costa Saraiva.
Laureano foi apontado pela Polícia Civil e pelo Ministério Público (MP) como um dos líderes do movimento no Estado. Ele admitiu que integrava grupo skinhead, mas disse que não perseguia judeus, negros e homossexuais.
O advogado Marcelo Bertoluci, que defende Laureano, argumentou que não existem provas contra ele. Álvaro Fernandes, que defende o réu Thiago Araújo da Silva, disse que o cliente não tem qualquer outro registro policial na vida. Tatiana Boeira, responsável pela defesa de Fábio, pediu que fossem retirados da sessão objetos de apologia do nazismo que foram apreendidos durante a investigação. A defensora pública alegou que os materiais seriam de outros integrantes do grupo, que serão julgados posteriormente.
— Raspar a cabeça e pertencer a um grupo chamado Carecas não quer dizer que é nazista — ressaltou.
Para o presidente da Federação Israelita do RS, Zalmir Chwartzman, o julgamento representa a forma como o Brasil encara os crimes desse tipo e, por isso, foi acompanhado pela comunidade judaica mundial:
— É simbólico. As pessoas estão recebendo o recado de que não se pode brincar com a vida dos outros impunemente. A comunidade judaica brasileira e do mundo inteiro está de olho. A condenação dessas pessoas vai significar que, no Brasil, pessoas que cometem crime de ódio vão para a cadeia — afirmou.
Grupo tinha células na Capital e no Interior
Para o delegado Paulo César Jardim, um dos especialistas da Polícia Civil em investigações de grupos extremistas, o episódio ocorrido há 13 anos representou marco histórico no surgimento do movimento neonazista no Brasil.
— Exatamente na data em que o mundo comemorava os 60 anos do fim do Holocausto, aconteceu uma ação paramilitar. O recado que eles queriam passar era de que o movimento seguia vivo — afirma o delegado.
O policial recorda que na época já havia notícias de jovens que estariam atacando pessoas na rua. Mas não se imaginava que havia um grupo organizado. Após o ataque na Cidade Baixa, foram feitas buscas em casas de suspeitos.
— Não fazíamos ideia do que estava nascendo, o que estava surgindo. Começamos a achar material nazista: livros, cadernos, bandeiras, camisetas, material de propaganda, e aí começamos a entender — recorda.
A polícia localizou cinco células de um mesmo grupo neonazista na Capital e em outras cidades, como Caxias do Sul e Viamão. Até hoje, o delegado prefere não mensurar o número de integrantes do grupo. A maioria são jovens. Alguns de classe média alta, como Laureano, filho de professores universitários.
— O que unia todos era a força bruta. Apresentavam-se como jovens guerrilheiros urbanos. Tinham código de conduta, faziam tatuagens nazistas. Consideram judeus, negros e homossexuais uma sub-raça. Tudo isso surgiu em 2005 – recorda.
Na época, foram apreendidas durante as buscas na Rua Demétrio Ribeiro, no Centro Histórico, bombas e munições, além de material de propaganda nazista, que, para o delegado, seriam usadas em ataques.
— Abortamos explosões em sinagogas e ataques à passeata livre. Não tenho dúvida que o trabalho do grupo de combate ao neonazismo evitou muitas tragédias.
O delegado afirma que até hoje a polícia monitora suspeitos.
— O movimento neonazista sentou no banco dos réus pela primeira vez no Brasil. Eles são contra negros, judeus, homossexuais, que são classes que formam o povo. E é por esse povo que estão sendo julgados. Interessante isso — analisa o delegado.
Entenda o caso
Segundo denúncia do MP, os três réus seriam integrantes de um grupo chamado Carecas do Brasil, que divulgava ideias discriminatórias na internet e conteúdos antissemitas e nazistas, pregando a supremacia da raça ariana. Além dos três réus, há outros 11 acusados que devem ir a júri pelo crime em uma outra data a ser definida.
Saiba a diferença
Alguns grupos neonazistas são oriundos dos skinheads (movimento jovem). Mas não necessariamente um skinhead é simpatizante dos neonazistas. Esses grupos extremistas surgiram após a morte de Adolf Hitler e seguem suas ideias de segregação racial.
Confira o áudio dos dois capítulos da série especial de reportagens: