Sessenta e nove dias antes de invadir um apartamento e matar duas pessoas, Diego Anderson Fontoura passou o Natal de 2017 com a família em Santa Maria. Tomou banho com os filhos pequenos na piscina de plástico instalada na frente da casa da mãe, em uma rua de paralelepípedo do bairro Tancredo Neves, comunidade de 11,4 mil moradores delimitada pelas rodovias BR-287 e BR-158, na periferia da cidade. Tatuador, Diego aprimorara a técnica em Santa Catarina, para onde havia se mudado meses antes:
— Cada vez melhor, hein? Parabéns — disse uma amiga ao ver as fotos dos trabalhos, com imagens de flores, laços cor de rosa e uma das obras-primas, um grande leão tatuado no ombro e braço direito de um amigo.
— Tá se puxando hein, filho? Muito bom trabalho — entusiasmou-se o pai, Floriano Silva Fontoura.
Ele e a mãe de Diego estão separados há mais de 12 anos. Fontoura havia se mudado para São Borja, onde trabalha como administrador. Ela, funcionária de uma farmácia em Santa Maria, tinha nova família.
A 7,5 quilômetros dali, o garçom Gilberto Mendes, 62 anos, e o filho Gabriel, 16 anos, também passaram o Natal em família. Pai e filho, os outros irmãos de Gabriel, Mateus e Felipe, e a mãe, Vera Lúcia Gonçalves, 56 anos, fizeram a ceia na casa de Ana Lúcia, irmã de Vera, no bairro Nossa Senhora do Rosário.
Como de hábito, não trocaram presentes. Preferiram comemorar, cada um levando um prato. Gilberto e Vera chegaram com chester. À mesa, havia também salpicão e diferentes tipos de tortas doce. Não esperaram a meia-noite. Antes de comer, fizeram uma prece.
Nos últimos tempos, o casal passara a participar de reuniões de oração na casa de outra irmã de Vera, Ana Maria Brazil Gonçalves Balk, 53 anos. Desde então, Gilberto parara de fumar. Naquele Natal, tinham ainda outros motivos para celebrar. Vera finalizava o ano em que voltara a estudar e concluíra o Ensino Médio.
— Mudou muito a situação da gente. Não dá para dizer: "Ah, agora temos um monte de dinheiro", mas consigo ganhar meus trocos — dizia a dona de casa.
Vera também começou a fazer faxina fixa em uma residência e cuidava de crianças de segunda a sexta-feira em outra. Conseguiu aumentar a renda familiar para ajudar a pagar o aluguel de R$ 500 do apartamento térreo, de fundos, na Rua Floriano Peixoto, no centro de Santa Maria. Gilberto fazia planos.
— Vou levar a Vera para sair — dizia, depois de se recuperar de uma luxação no braço, resultado de uma queda no restaurante Caixeiral, onde trabalhava como garçom, o Beto Pança, como era conhecido há 14 anos.
Histórico policial
Foi mais ou menos na época do acidente de Gilberto que Diego se envolveu em sua última ocorrência policial em Santa Maria, antes do duplo homicídio do fim de semana passado. No feriado de 12 de outubro de 2016, pilotava uma motocicleta com um amigo quando furou uma blitz da Brigada Militar (BM).
Houve perseguição. Os dois caíram do veículo na Vila Maringá. Diego foi autuado por direção perigosa e por ter reagido à abordagem dos policiais.
Descrito como um jovem alegre e "cheio de vida" pelos vizinhos do bairro Tancredo Neves, Diego cresceu com outros quatro irmãos – um deles é hoje policial militar em Porto Alegre.
Moradores da região lembram do garoto jogando futebol e taco na rua no tempo em que o bairro, então com poucas casas, se chamava Cohab Passo da Ferreira.
— Era um rapaz bonito. Cheio de vida — conta uma moradora que conhecia Diego "desde a barriga da mãe".
Quando o jovem quebrou a perna e teve de colocar gesso, era comum a família recorrer ao apoio dos vizinhos.
— Todos se ajudam — diz uma moradora em frente à casa da família. — Era tia pra lá, tia pra cá — sorri ao relembrar.
Diego concluiu o Ensino Fundamental na Escola Estadual Tancredo Neves. Depois, foi para a escola Estadual Devanier Paulo Lauda, antigo Ciep.
— Foi lá que ele começou a apresentar problemas, a mudar o jeito de ser. A ficar mais no canto dele. Mais fechado — conta outra vizinha.
Nessa época, alguns amigos se afastaram.
— Tomei nojo — disse um jovem que cresceu com Diego.
— Que ele era drogado, não há dúvida — sentencia outro.
Vizinhos tentavam tranquilizar a mãe ressaltando as diferenças naturais entre filhos.
— Os dedos das mãos não são iguais — dizia uma amiga.
As ocorrências policiais começaram em 2011, quando Diego foi autuado por dirigir sem habilitação. No ano seguinte, foi detido por posse de drogas. Em 2014, fugiu do local de um acidente de trânsito. Em 22 de junho de 2015, foi preso pela primeira vez, por receptação. Foi detido com uma jaqueta, dois relógios, dois óculos de sol e outros pertences de uma vítima de assalto. Na investigação, a polícia concluiu que ele não apenas ficara com os produtos como também havia participado do roubo com outros três comparsas. O grupo invadira uma residência no bairro Cerrito e mantivera vítimas em cárcere sob ameaça.
De SC, a volta para Santa Maria
Diego ficou apenas um dia na Penitenciária Estadual de Santa Maria. Voltaria à cadeia em 16 de abril de 2016, por tráfico de drogas. No carro em que estava, foram encontradas 21 pedras de crack. Cinco meses depois, ao sair da prisão por ordem judicial, mudou-se para Santa Catarina por insistência dos pais.
— A gente tirou ele daqui, daquela região de Santa Maria, por causa dos companheiros que tinha — conta o pai.
Em Palhoça, na Grande Florianópolis, Diego morava com a mulher e os dois filhos pequenos. Foi quando começou a exibir no Facebook seus trabalhos como tatuador.
"Mas bah, tchê, que talento massa, Dieguito", comentou um admirador. "Virtudes e habilidade não se compram no mercado. Muito bonito. Parabéns.", postou outro. Em 24 de novembro do ano passado, o pai escreveu: "Aí filho, tá cada vez melhor, se aprimorando hein?"
Por algum motivo, que não se sabe até o momento, Diego regressou a Santa Maria, aparecendo na casa da mãe na quarta-feira, 28 de fevereiro. Logo, sumiu, supostamente sem dar explicações.
"Parece que veio dar tchau para sempre"
Naquela semana, Gilberto andava ansioso. O restaurante Caixeiral estava fechado desde que o teto do clube, fundado há 140 anos, desabou, na madrugada de 6 de fevereiro, provocando um estrondo que despertara os santa-marienses perto dali. Não houve feridos no incidente. Mas Gilberto ficou temporariamente sem a ocupação.
Há 14 anos no local, o garçom tornara-se ali figura muito conhecida de Santa Maria. Atendia clientes pelo nome, sabia de cor o gosto de alguns. Cedo da manhã, com o estabelecimento ainda fechado, era comum encontrá-lo a uma mesa, passando álcool nos talheres. Marta Helena Ferreira, 57 anos, mulher de Roberto Ferreira, 59 anos, dono do restaurante do Caixeiral, sentava-se para ajudar.
— Vamos vencer esses talheres — incentivava ela.
— Esse aí vai ser o chefe — respondia Gilberto, referindo-se ao neto de Marta, João Pedro, três anos.
Às quintas-feiras, o garçom fazia questão de comprar flores brancas para enfeitar o restaurante.
Nos últimos tempos, andava orgulhoso ao exibir no celular fotos do filho Felipe, artista e conhecido na cidade pelas atuações circenses como palhaço.
Pontualmente às 11h, Gilberto estava de avental, esperando pelos clientes. Quando o Caixeiral reabrisse, estava nos planos de Roberto promovê-lo a recepcionista.
— Ele tinha um desgaste no joelho. Tinha problema e não queria fazer cirurgia, porque não podia ficar parado — conta o empresário.
Na segunda-feira, 26 de fevereiro, Gilberto estava procurando novos locais para o funcionamento do restaurante até a reabertura no clube. Caminhava pelo centro com o filho Gabriel. Chegou a parar no Caixeiral para levar pão aos colegas, mas Marta também havia comprado.
— Então, vou levar esses para casa — disse, guardando o pacote.
Na quarta-feira, Gilberto não apareceu. Na quinta, esteve em uma barbearia da Rua Riachuelo, mas não quis cortar o cabelo.
— Parece que veio apenas para me dar tchau para sempre — contou o proprietário.
A madrugada de terror
Na madrugada daquele sábado, 3 de março, Vera publicou em seu perfil no Facebook um texto de Erma Bombeck, escritora americana famosa nos anos 1970 por suas colunas nos jornais em que descrevia a vida de uma dona de casa suburbana do meio-oeste dos EUA:
Certa vez perguntaram a uma mãe qual era seu filho preferido, aquele que ela mais amava. E ela, deixando entrever um sorriso, respondeu:
"Nada é mais volúvel que um coração de mãe. E, como mãe, lhe respondo: o filho dileto, aquele a quem me dedico de corpo e alma...
É o meu filho doente, até que sare. O que partiu, até que volte. O que está cansado, até que descanse. O que está com fome, até que se alimente. O que está com sede, até que beba. O que está estudando, até que aprenda. O que está nu, até que se vista. O que não trabalha, até que se empregue. O que namora, até que se case. O que casa, até que conviva. O que é pai, até que os crie. O que prometeu, até que se cumpra. O que deve, até que pague. O que chora, até que cale.
E já com o semblante bem distante daquele sorriso, completou: O que já me deixou... até que o reencontre.
Eram 2h2min. Três horas e meia antes de Diego invadir a casa de Vera, deixá-la ferida com um tiro no rosto, e matar seu marido, Gilberto, e o filho mais novo do casal, Gabriel.
Naquela madrugada de poucas horas de sono, no sábado, 3 de março, Gilberto Mendes, 62 anos, decidira ficar no quarto do filho. Gabriel Mendes, 16 anos, dormia com a mãe, Vera Lúcia Gonçalves, 56 anos, no quarto do casal no apartamento térreo, de fundos do prédio na Rua Floriano Peixoto, quase na esquina da Tuiuti, uma das áreas mais movimentadas de Santa Maria.
Armado com uma pistola 9mm, Diego Anderson Fontoura, 29 anos, desceu a Floriano Peixoto e abordou um grupo de jovens em frente ao bar Pingo de Fome. Exigiu um carro, alegou estar sendo perseguido. Marcelo Fraccari, 37 anos, dono do veículo, se negou a entregar e foi baleado no peito. Diego, então, seguiu rua abaixo. Cento e 50 metros dali, pulou um muro, despencou de uma altura de cinco metros. Caiu no terreno, uma espécie de estacionamento, ao lado do prédio da família de Gilberto.
Para o delegado regional de Santa Maria, Sandro Meinerz, a família pode ter deixado abertas a grade de acesso ao quintal e a porta dos fundos, que leva à cozinha. Outro filho do casal, Felipe, estava para chegar.
Por volta das 5h, Gilberto teria ouvido um barulho. Ao levantar, teria encontrado Diego já dentro de casa. Outra hipótese é a de que Diego tenha batido à porta e Gilberto tenha aberto pensando se tratar de Felipe. Alguns familiares dizem que o garçom também poderia estar no jardim – ele tinha o hábito de levantar cedo para, no silêncio da manhã, ouvir o som dos pássaros.
Já dentro da casa, Diego, agressivo e aparentemente sob efeito de drogas, teria exigido joias, ao que a família, pobre, teria oferecido poucos anéis.
— Pode levar o que quiser. A gente não tem nada — disse Vera, segundo o depoimento que ela daria dias depois à polícia.
O relato segue com Diego golpeando Gilberto com a arma. Ao ver o pai sendo agredido, Gabriel teria dito:
— Bate em mim.
Após 15 minutos de terror, Gilberto e Gabriel foram mortos com tiros na nuca entre a cozinha e a sala. Vera levou um tiro no rosto – disse aos investigadores que só sobreviveu porque fingiu estar morta.
Enquanto andava de um lado para o outro dentro do apartamento, Diego destruía os poucos móveis da família. Cama, cadeiras e armários. Depois, prostrou-se sentado no canto do quarto do casal, ao lado da janela. A pistola 9mm estava caída do outro lado do cômodo. Fez-se silêncio.
Nunca tinha visto uma pessoa em um estado tão fora do normal (...) A princípio, ele teria ingerido substâncias entorpecentes.
SANDRO MEINERZ
Delegado regional de Santa Maria
Na sequência, contou Vera, ela escorregou o corpo até o quarto do filho, trancou a porta com uma escrivaninha e a cadeira. Ferida e sem celular à mão, correu até o computador. Mandou pelo Messenger um apelo a um sobrinho, vigilante:
"Oi. Estamos feridos. Trancados no quarto. O ladrão armado e no meu quarto. Me ajuda, estamos feridos, estamos todos. Me ajuda. Não demora, por favor, estou com um zumbido no ouvido e uma bala na cara".
Vera permaneceu trancada sem saber exatamente o que estava acontecendo nas outras peças. Fez o primeiro contato com a polícia pela janela do quarto. Quando os policiais entraram, Diego já estava sem ação.
— Nunca tinha visto uma pessoa em um estado tão fora do normal — afirmou o delegado. — A princípio, ele teria ingerido substâncias entorpecentes. Há drogas estimulantes, tipo a cocaína ou crack, que podem ter efeitos parecidos, mas também pode ser uma droga sintética, como o LSD e o ecstasy, que causam irritação, perda de consciência, paranoia e convulsões — explicou.
Gilberto e Gabriel estavam mortos. Foram sepultados no domingo, no Cemitério Santa Rita, em clima de revolta entre amigos e parentes. Vera foi levada para o Hospital Universitário de Santa Maria (Husm) e deu alta na sexta-feira. Fraccari, a primeira vítima, deixou o hospital dois dias antes.
Diego foi levado ao Husm, onde morreu às 5h40min de domingo, 24 horas depois de ter dado início à noite de horror. Foi enterrado às pressas, sem velório, em gaveta do Cemitério Municipal de São Pedro do Sul, cidade vizinha a Santa Maria.
Quando GaúchaZH esteve no apartamento da família, na última terça-feira, Felipe e Mateus, o outro filho de Gilberto e Vera, recolhiam os poucos móveis que sobraram. Muitos estavam transformados em entulho, dada a violência do agressor. No piso de sinteco, havia marcas de concreto arrancadas da parede no quarto onde Diego foi achado.
Com ajuda de amigos, apressavam a mudança, antes que a mãe saísse do hospital, explicou Mateus:
— Não queremos que ela volte para cá.
O apartamento, alugado por R$ 500 mensais, deve ser devolvido ao proprietário.
Mãe teme retaliação, pai apela por respeito
Nem velório pude fazer. Tive de enterrar meu filho escondido em uma cidade vizinha.
FLORIANO FONTOURA
Pai de Diego
GaúchaZH procurou a mãe de Diego na residência da família, no bairro Tancredo Neves, mas ela se mudou temporariamente para a casa de parentes, temendo represálias pelo crime do filho.
— É uma tragédia para duas famílias — limitou-se a dizer, por telefone.
O pai, Floriano Fontoura, conversou com a reportagem na manhã de sexta-feira. Fez críticas ao "ódio incentivado pela imprensa em Santa Maria":
— Nem velório pude fazer. Tive de enterrar meu filho escondido em uma cidade vizinha. Isso a imprensa não mostra.
Espírita, Fontoura trabalha há quase uma década como voluntário na recuperação de jovens dependentes químicos na Fazenda Chico Xavier, em São Borja, onde mora há 12 anos.
— Ninguém sabe que tem uma família honesta por trás, ninguém sabe que tem outros filhos maravilhosos que são irmãos dele, que são estudantes, trabalhadores, que tem um pai com dignidade, que lutou a vida inteira pelos filhos, que salvou várias famílias da situação que eu mesmo vivi — afirmou.
Do Natal de 2017 em Santa Maria, a última vez que viu Diego com vida, recordou:
— Ele estava bem. Havia meses que cuidava da família, tatuava, com dois filhinhos e a mulher, em Palhoça. Teve uma recaída brutal. Veio e passou sei lá quantos dias se drogando para chegar ao surto e a overdose que levou ao que aconteceu.
Por fim, pediu a divulgação de um apelo:
— Frisa que a droga é uma epidemia mundial. Por trás dessas criaturinhas (dependentes químicos) há pessoas trabalhando para ajudá-las. Famílias honestas. Não são bandidos. Fazem de tudo para salvar seus filhos. Sou profissional da área de administração, estou à frente de um grande hospital, tenho vários cursos de pós-graduação, estou fazendo mestrado. Não sou marginal nem um vagabundo que botou arma na mão de um filho.
Enquanto aguarda laudos toxicológicos que poderão apontar a causa do suposto surto psicótico de Diego Anderson Fontoura, 29 anos, a Polícia Civil começou a ouvir os envolvidos. Mateus Mendes, filho de Gilberto e irmão de Gabriel, mortos por Diego, prestou depoimento na quarta-feira.
A mãe do atirador também foi chamada. A polícia aguarda ainda a perícia na pistola 9mm usada no crime. A mulher de Gilberto, Vera Lúcia Gonçalves, que deixou o hospital na sexta-feira, também será ouvida nos próximos dias.