— Morreu porque disse que era de outra facção e alguém ouviu.
Quem conta é um dos moradores da Rua Campos Verdes, que marca o limite entre os bairros Salomé e Maria Regina, em Alvorada, ao lembrar a execução de Lucas de Oliveira Rolim, 27 anos, no começo de setembro. O homem foi executado por três homens armados quase na frente de casa. E não seria de estranhar se o morador listasse outros homicídios recentes na mesma região e com o mesmo pano de fundo. Em Alvorada, raro é quem não conhece, ou pelo menos não ouviu falar, de alguém assassinado recentemente.
Em 2017, conforme dados da Secretaria da Segurança Pública, a cidade disparou no indesejado posto de cidade mais violenta do Rio Grande do Sul. Chegou à inédita marca em sete anos de levantamento, de pelo menos 187 assassinatos, com taxa de 90 homicídios/100 mil habitantes. São 84 mortos a mais do que em 2016 — alta de 81%.
— As disputas do tráfico são, quase na totalidade, os motivos dos crimes. Não há um grupo hegemônico, e as relações entre quadrilhas são muito dinâmicas, porque são pequenos grupos, que muitas vezes têm uma boca em um determinado beco e criam relações com determinada facção. A realidade é que muito poucos criminosos de Alvorada têm, de fato, influência no comando dessas facções. Eles simplesmente identificam-se e se agrupam nas cadeias, mas nas ruas, estão bem longe do poder — analisa o delegado Edimar Machado.
O limite entre os bairros Maria Regina e Salomé é um dos exemplos das relações instáveis da criminalidade. Em um beco ao lado de um valão, atuariam traficantes de uma facção. Na viela vizinha, a menos de 50 metros de caminhada em chão batido, ficam os rivais. Mas todos se conhecem.
— Todo mundo sabe quem mata e quem morre, mas quem é que vai botar a cara para falar, correndo o risco de levar um tiro logo ali? — desabafa o morador que, como todos os vizinhos, prefere nem falar sobre a realidade cotidiana.
Só na Rua Campos Verdes, foram pelo menos três homicídios em 2017.
— Fora os tiros, o pessoal que foi baleado e os que escaparam — conta uma moradora.
Ela e outras pequenas comerciantes da região até arriscam um chimarrão em frente a algum dos estabelecimentos, mas é sempre com um olho na cuia e outro na rua. Qualquer movimento estranho as deixa em alerta.
Foi assim na manhã do sábado anterior ao Natal.
— Estava atendendo na loja e de repente começaram aqueles estouros que não paravam mais. Cheguei a pensar que já eram foguetes, mas aquela hora. De repente, todos estavam atirados no chão na rua e nas casas. Eles estavam tiroteando às 21h aqui na frente — lembra a comerciante de 45 anos.
Assustou, mas ali os moradores parecem estar anestesiados pela violência.
— Outro dia foi às 14h, aqui no meio da rua. Um de bicicleta morreu e o outro escapou. Fico preocupada porque os meus filhos pequenos, de nove e quatro anos, já nem dão bola. Será que já ficou comum? — lamenta outra moradora de 45 anos.
Uma bala perdida custou o emprego
O perfil da criminalidade em Alvorada está diretamente ligado às condições sociais da população. Segundo o levantamento de 2015, Alvorada tem o pior PIB per capita do Estado. Três vezes inferior ao de Gravataí, por exemplo. E apenas 10,8% da população tinha ocupação naquele ano _ menos da metade de Gravataí.
— O tráfico de drogas, com a venda de pequenas quantidades de crack, aparece como chance de lucro rápido. A violência maior está justamente neste nível do tráfico, que prevalece em praticamente todas as regiões da cidade — explica o delegado Edimar Machado.
Para quem consegue um emprego, proteger-se da violência virou novo critério necessário no dia a dia.
— Quem está morrendo tem envolvimento, mas sempre sobra para quem não tem nada a ver — lamenta um jovem de 20 anos.
Até o final do ano passado, vivia a perspectiva do primeiro emprego com carteira assinada. Quando completou o primeiro mês na condição, foi atingido por uma bala perdida em meio a um tiroteio no bairro Onze de Abril.
— Estava caminhando na rua e começou aquela correria. Nem deu tempo de me esconder, já senti o meu pé — conta.
Foram sete meses entre a internação hospitalar e a impossibilidade de caminhar. O rapaz perdeu o emprego. Agora, tenta se reerguer trabalhando informalmente em uma lavagem de carros no bairro Maria Regina.
Faltam policiais, sobram crimes
O jovem baleado no pé estava disposto a falar à polícia o que sabia do crime. Depois, desistiu. Ele relata só ter sido ouvido uma vez, ainda no hospital. Nunca mais foi chamado à Delegacia de Homicídios de Alvorada, que investigaria o caso. O crime não teve mortos e aí, diante da limitação da delegacia, foi para o fim da fila das prioridades investigativas.
É uma dificuldade real. As pessoas (policiais aprovados), geralmente do Interior, têm visão muito ruim de Alvorada, aí resistem à nomeação. Estamos estudando formas de impedir debandadas.
VOLNEI FAGUNDES
Delegado regional metropolitano
A delegacia especializada conta com 12 agentes, somente nove dedicados à investigação, e dois deles sempre em regime de plantão. Com média de um assassinato a quase dois dias, não houve plantão em 2017 sem um homicídio a ser investigado.
— Naturalmente, uma investigação acaba atropelando a outra — admite o delegado Edimar Machado.
Em Porto Alegre, por exemplo, onde o Departamento de Homicídios conta com seis delegacias, cada uma delas tem, em média, 14 agentes na investigação. A 5ª DHPP, que tradicionalmente tem o maior volume de homicídios na Capital, atendeu pelo menos 140 homicídios consumados em 2017.
Se não bastasse a alta demanda e a dificuldade em encontrar testemunhas dispostas a falar com a polícia, difícil é encontrar policiais que queiram trabalhar em Alvorada. No chamamento de concursados no começo do ano, restavam dois aprovados e havia duas vagas para a cidade. Eles preferiram não assumir seus lugares. Desde a criação da especializada, no final de 2012, duas vezes houve debandadas de agentes com as saídas dos delegados para departamentos em Porto Alegre.
Na última turma de novos agentes, que foram nomeados em dezembro, a Homicídios de Alvorada recebeu cinco novos agentes, mas já precisou repor perdas, porque dois haviam saído da delegacia.
— É uma dificuldade real. As pessoas, geralmente do Interior, têm visão muito ruim de Alvorada, aí resistem à nomeação. Estamos estudando formas de impedir debandadas. O plano é de que pelo menos até o final de 2018 ninguém seja removido de Alvorada. Pelo menos até que tenhamos novas nomeações, e aí as delegacias de homicídios da região serão priorizadas — afirma o delegado regional metropolitano, Volnei Fagundes.
Quando se trata da investigação de homicídios, a rotatividade de agentes é ainda mais prejudicial.
— A solução mais rápida dos crimes deste tipo é diretamente relacionada ao conhecimento adquirido e acumulado pelas equipes de investigação. Quando acontece um crime, se o agente já tem o mapeamento das relações criminosas naquela área, a busca por elementos de prova fica facilitada — explica Fagundes.
De acordo com diretor de polícia Metropolitano, delegado Fábio Motta Lopes, não significa que o conhecimento adquirido se perde com a saída de agentes.
— Isso fica na delegacia, mas é claro que um agente novo precisa se ambientar às situações. E isso pode levar um tempo maior — afirma.