A participação de um jovem criador de galinhas, morador de uma pequena localidade rural do Rio Grande do Sul, em uma célula terrorista que planejava realizar atentados durante os Jogos Olímpicos do Rio, em 2016, causou surpresa. No início do mês passado, a condenação de Israel Pedra Mesquita, 27 anos, a seis anos e cinco meses de prisão em regime fechado pelo crime de apologia do terrorismo aumentou a curiosidade. Agora, ZH teve acesso ao processo judicial, que esclarece as acusações contra o gaúcho e os motivos da sentença.
A maior parte das provas coletadas pela Polícia Federal (PF) na Operação Hashtag – considerada por muitos um exagero, em razão da publicidade feita pelo então ministro da Justiça, Alexandre de Moraes (hoje ministro do Supremo Tribunal Federal) – eram interceptações feitas com autorização judicial. Foi quando ouviu conversas do grupo sobre compra de armas que a PF resolveu prender os extremistas inspirados no grupo Estado Islâmico (EI).
Leia mais:
Gaúcho é um dos condenados por apologia do terrorismo
Operação Hashtag: os detalhes da maior ação antiterrorismo no Brasil
Gaúcho preso queria contrabandear armas para suspeitos de terrorismo
"É hora de caçar judeus, esses ratos. O mundo deve ser libertado dessa nova ordem mundial vigente. Adolf Hitler começou o serviço, temos de concluir", dizia Mesquita nos diálogos interceptados. No depoimento à PF, após ter sido preso em junho do ano passado, o agricultor não negou sua admiração pelo EI, mas disse que não tinha intenção de realizar atentados no Brasil. Na peça, que compõe o processo consultado por ZH, em resumo, o jovem afirmou que:
1 – tem simpatia pelo EI porque combate injustiças contra muçulmanos;
2 – concorda com o atentado contra o jornal satírico francês Charlie Hebdo porque usaram indevidamente a imagem do profeta, o que resulta em morte;
3 – fazia parte do grupo Sharia no Brasil Já, que prega guerra santa em defesa do islamismo;
4 – conheceu virtualmente homens que acabariam presos com ele, os quais o teriam convocado a lutar na Síria, algo que nunca se concretizou;
5 - escreveu contra judeus porque estava com ódio.
6 – não cogitou realizar atentados no país;
7 – crê que os xiitas (vertente minoritária do islamismo) são infiéis e concorda que tenham quatro opções: pagar para viver, aceitar o Islã, morrer ou ir embora das terras sunitas (vertente muçulmana, majoritária, a qual está ligado o EI).
Em fala ao juiz federal, hesitação e negativas
Meses após o depoimento à PF, em dezembro, o juiz Marcos Josegrei da Silva, da 14ª Vara Federal de Curitiba, interrogou os oito suspeitos denunciados pelo Ministério Público Federal (MPF) e que viraram réus – outros quatro não chegaram a ser acusados.
Aí, a versão de Mesquita mudou. Na conversa com o magistrado, registrada em vídeo, disse que estava "nervoso" no interrogatório da PF e, por isso, falou "o que eles queriam ouvir". Salientou que não tinha advogado na ocasião. Na sentença de condenação, o juiz explicou que a lei não prevê presença de advogado em toda a ação e ressaltou que o depoimento também foi filmado, "sem qualquer indício de que os acusados tenham sido coagidos".
"Talvez estivessem só brincando", disse réu sobre o grupo preso
Ao juiz, Mesquita negou ser administrador do perfil Mujahedin, ligado ao EI, no Facebook, mas se recusou a comentar a postagem, na linha do tempo de sua conta pessoal, dos dizeres: "Cada dia que passa tenho mais nojo desse maldito povo judeu. Ratos imundos, que insultam o nome do Profeta".
Afirmou não se recordar ao ser apontado como administrador do grupo Jundallah (admiradores do EI) no Telegram e disse que, a inteção das comunicações mantidas pelo aplicativo e pelo WhatsApp com os outros réus era a de "basicamente aprender religião":
– Conheci eles (pessoalmente) na prisão.
O gaúcho ainda foi questionado por um procurador presente no interrogatório sobre a intenção de comprar armas na fronteira.
– Falei por falar – afirmou o jovem.
O procurador também perguntou se o grupo iria mesmo explodir bombas com cacos de vidro.
– Acho que ninguém tinha real intenção, pela falta de capacidade – desdenhou Mesquita.
– Vocês ficavam só perdendo tempo conversando nos grupos então? – insistiu o procurador após mais alguns minutos da conversa.
– (Ficávamos) só brincado, só de brincadeira – respondeu o criador de galinhas.
O vídeo do interrogatório mostra que, quando o juiz mencionou o depoimento do pai de Mesquita sobre a rotina de cuidados do jovem com o avô doente, vítima de AVC, o réu baixou os olhos, pareceu se emocionar. E o juiz continuou, em tom de sermão:
– Um grupo invade uma cidade de outra etnia, escraviza crianças, uma tribo inteira, vende pessoas para satisfação sexual dos combatentes, e diz que isso é em nome de Allah. E o senhor começa a compartilhar imagem desse tipo de situação. Aí ouço seu pai (sobre você). Não é a mesma pessoa. Não parece ser.
– Foi uma das coisas que fez abandonar a vontade de reverter (converter-se ao Islamismo). No Alcorão não diz isso. Perdi total interesse, nunca mais postei esse tipo de coisa, parei, por é totalmente o contrário da religião – respondeu Mesquita em voz baixa.
Dias após esse depoimento, em dezembro, o gaúcho foi libertado, sob condição de ficar em sua cidade e se apresentar regularmente à PF (leia no quadro abaixo). Em 4 de maio, foi condenado, mas pode recorrer em liberdade.
Na sentença, o juiz rebate a alegação dos réus, sobre não ter intuito de concretizar atentados: "Bravatas não podem ser aceitas como aptas a excluir o crime. Desimporta se existia, ou não, a real intenção de execução concreta capaz de produzir ataques a pessoas ou instalações físicas em nome da causa sectária. Comparando, no campo da agressão sexual contra crianças ocorre o mesmo: a simples divulgação do vídeo pornográfico com conteúdo infantil é crime, sem levar em consideração se o indivíduo possui real intento de estupro".
AS MEDIDAS PARA LIBERTAÇÃO
No habeas corpus de 15 de dezembro de 2016, consta uma série de condições para que Israel Pedra Mesquita aguardasse em liberdade até o transito em julgado do processo.
- O réu não poderá se afastar sem autorização judicial do polo de Pelotas, que abrange a área rural onde reside.
- Em substituição ao uso de tornozeleira eletrônica, precisa apresentar-se quinzenalmente à Justiça Federal. Está proibido de se comunicar, por qualquer meio, inclusive a internet, "com pessoas do Brasil ou do Exterior que mantenham ligação com o Estado Islâmico ou qualquer outra organização que seja considerada terrorista, bem como divulgar mensagens de apoio ao terrorismo ou à organização extremista".
- Também está proibido de frequentar cursos ou atividades que envolvam explosivos, armas de fogo, simulacros e artes marciais.
"A minha palavra não vale nada", diz Mesquita
Tranquilidade era o que os pais de Israel Pedra Mesquita queriam quando deixaram o bairro Fragata, em Pelotas, e mudaram-se com a família para Morro Redondo, poucos dias antes de 21 de julho do ano passado. Naquela data, viram o filho ser preso e mergulharam em uma tormenta de problemas com a condenação por apologia do terrorismo do primogênito e ex-gesseiro, que se dedicava à criação de galinhas. Inconformado, Mesquita alega que as explicações dadas à Justiça foram em vão.
– A minha palavra não vale nada – reclamou durante rápida entrevista concedida a ZH no sítio onde vive com os pais, um irmão e o avô materno.
Quando a equipe de reportagem chegou, Mesquita tinha ido ao mercado com o pai. Quem abriu o portão de arame foi a mãe, de 67 anos. Já na cozinha, enquanto passava um café, ela contou que o filho tem adoração por animais. Na infância, preferia ganhar bichos a outros presentes nas datas festivas:
– Galinha, porco e cavalo são os que ele mais gosta. Vende galinha e porco para sobreviver.
Citando a dedicação do caçula aos estudos, comentou sobre a aversão do mais velho às salas de aula. Foi só por insistência dela que Mesquita concluiu o Ensino Fundamental na Escola Municipal Nossa Senhora de Lourdes, no bairro onde nasceu e morou em Pelotas até junho de 2016.
– Ele é muito conversador. Está sempre falando com um e com outro – descreveu a mãe.
Entre novos e antigos vizinhos, surpresa após eclosão do caso
Sem saber da presença da reportagem, que chegou sem aviso, Mesquita entrou pela cozinha, largou as sacolas de compras sobre a mesa e, só então, notou a visita. Arredio, sentou-se junto ao fogão a lenha e, após as apresentações, disse que não falaria sobre as acusações que resultaram em condenação:
– A respeito do processo, não vou falar. A orientação (dos advogados) é permanecer em silêncio total. Se você quiser saber das minhas galinhas, posso contar tudo.
A 30 quilômetros dali, no bairro onde Mesquita foi criado, amigos de infância contam ter notado as suas primeiras manifestações em relação ao islamismo há cerca de cinco anos. A um vizinho, ele teria mencionado que havia se convertido:
– Achávamos que estava brincando, que queria se aparecer.
Em 2016, a antiga vizinhança da família em Pelotas ficou chocada ao saber da prisão do jovem, acusado de extrapolar os limites da crença e enveredar pelo caminho do extremismo.
Em Morro Redondo, moradores da região onde Mesquita vive com a família não têm qualquer queixa do pelotense. A sua rotina, desde que deixou a cadeia, tem sido buscar leite e cuidar do avô acamado e dos animais do sítio. Tricolor, quando vai ao mercado aproveita para falar sobre futebol e comentar as atuações do Grêmio.
Atual diretor da escola onde Mesquita estudou, Sérgio Renato Costa da Rosa deu aula para o rapaz na 5ª série e diz não ter observado comportamento anormal dele quando criança:
– Ele falava muito sobre animais, contava dos cavalos que tinha.
Entre as criações de galinhas e porcos para venda, Mesquita foi amadurecendo como um adolescente diferente da maioria. Segundo a mãe, o hoje acusado de se incorporar a uma organização terrorismo por meio digital, não gostava de videogame nem de internet.
Durante toda a conversa com a reportagem, Mesquita mostrou-se uma pessoa esclarecida, sempre esquivando-se das perguntas relacionadas a religião ou terrorismo. No fim, ficou incomodado com o telefone da equipe deixado sobre a mesa e questionou se a conversa estava sendo gravada. Com a negativa do repórter, emendou:
– Já perguntaram coisas que não têm nada a ver e gravaram. Colocaram palavras na boca da gente.
A mãe completou:
– O problema é que estamos expostos demais.
A OPERAÇÃO HASHTAG
- Faltavam poucos dias para os Jogos Olímpicos do Rio quando a Polícia Federal (PF) prendeu, em julho do ano passado, 12 pessoas suspeitas de planejar atentados, na Operação Hashtag. Foram muitas as surpresas, a começar pelo fato de que nunca se teve notícia desse tipo de crime no Brasil, em tempos democráticos, e porque, por mais curioso que seja, todos eram admiradores confessos da organização terrorista Estado Islâmico (EI).
- O pelotense Israel Pedra Mesquita, então com 26 anos, estava entre os detidos. Foi preso onde vivia, na vila de Açoita Cavalo, em Morro Redondo, zona sul do Estado, e ficou mais de seis meses encarcerado em um presídio de segurança máxima. Completou 27 anos dentro da cadeia, em outubro de 2016.
- Após prestar depoimento à PF e à Justiça Federal, foi libertado por meio de habeas corpus, em 15 de dezembro do ano passado, sob uma série de condições impostas pelo juízo (leia no quadro anterior).
- Em 4 de maio deste ano, foi condenado à pena de seis anos e cinco meses de reclusão, em regime fechado, mas manteve direito de recorrer em liberdade.