Localizado na Restinga, zona zul de Porto Alegre, condomínios do Minha Casa Minha Vida, Camila e Ana Paula, foram alvo de uma das maiores operações policiais da história do RS em 2015. Ação deveria ser o começo da retomada de uma comunidade até então controlada por traficantes. Passado um ano e meio, o poder público não cumpriu sua parte e o crime retomou o território.
– Hoje não sabemos quantas pessoas moram de maneira irregular lá, quantas crianças estão na escola ou quantas famílias poderiam ser atendidas por equipes de saúde. Os servidores não entram lá por medo.
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A constatação é da promotora de justiça Débora Menegat. Em 2015, ela foi designada para estar à frente de um grupo de trabalho envolvendo órgãos públicos que deveriam marcar a retomada do Estado contra o crime nos condomínios. Seria o gesto simbólico que sucedia uma das maiores operações da história da Polícia Civil gaúcha. Foram mais de 60 presos, mas sem que os demais órgãos cumprissem a missão, o tráfico retomou o território.
Nesta quinta, a Restinga foi cercada por helicópteros e viaturas. Era mais uma reação... da polícia. Duzentos agentes da Polícia Civil, Brigada Militar, Força Nacional, Guarda Municipal e EPTC centraram forças.
– É uma ação que vai se repetir como forma de mostrarmos a nossa presença e darmos um recado ao crime de que eles não vão controlar nenhum lugar. Temos denúncias de toque de recolher, imposição do medo e estamos reagindo – garante a delegada Shana Hartz.
Ordens vindas da cadeia
Este ano, 14 pessoas já foram assassinadas na Restinga. Número de vítimas semelhante às 16 do primeiro trimestre de 2015 – meses antes da Operação Gênesis. No mesmo período do ano passado, logo após a operação, foram sete. As lideranças presas seguem atrás das grades. Agora, dão ordens da cadeia.
– Há pessoas forçadas a entregar os imóveis, depois alugados pelos traficantes a pessoas ligadas a eles, ou coagidas por eles, para ser usado como esconderijo de armas e drogas – aponta o delegado Eibert Moreira.
Segundo o delegado, os condomínios viraram o enclave de uma das facções criminosas em guerra na Capital.
– A estrutura toda favorece a proteção deles, com o acesso controlado – observa.
Os moradores voltaram à vida como reféns.
– Já pensei em abandonar tudo por medo. Sempre sonhei em ter a minha casa, aí quando tenho vou ter que abandonar? – desabafa uma moradora, que prefere não ser identificada.
Ela foi uma das pessoas que sequer tiveram a chance de participar das tentativas de ações sociais promovidas pelo grupo de trabalho formado pelos Ministério Público Federal e Estadual, Defensoria Pública, Poder Judiciário, órgãos municipais, Caixa Federal e autoridades da segurança pública. Eram ações de cidadania no pátio dos condomínios. Um fracasso.
– Na última vez que tentamos, ninguém desceu dos apartamentos. Espiavam pela janela e tinham medo de serem vistos falando com algum representante de qualquer instituição pública – diz a promotora.
Segundo a promotora, as reuniões continuam acontecendo.
Resultados práticos, porém, são raros.
É proibido contrariar a facção
"Nas paredes, por todos os lados, estão as pichações com a marca da facção, porque é um território deles. Eles andam armados e impõem o terror, quem contraria, sai ou desaparece".O relato, com detalhes de como uma facção exerce poder entre as moradias, deveria estar documentado no depoimento de um morador à Polícia Civil, não fosse o medo. Depois de falar, ele leu o que havia sido digitado pelo policial. Apavorou-se. Começou a chorar em desespero. Entre lágrimas, pediu que o trecho fosse retirado para protegê-lo.
Situações como essa foram o ponto de partida para a Operação Gênesis, ainda em 2014. Infiltrados, agentes do Denarc passaram a morar no local e mapearam toda a quadrilha. O diretor de investigações, delegado Mario Souza, diz que a situação continua sendo monitorada. A garantia de controle do crime sobre a área é tamanha que, dias atrás, os agentes do Departamento de Homicídios apreenderam um carro suspeito de ter sido usado para carregar o corpo de uma vítima esquartejada, que estava estacionado no Residencial Ana Paula.
– Eles não tiveram o trabalho sequer de retirar a placa original do veículo roubado. Não conseguimos encontrar armas ou prender algum suspeito, mas apuramos que homens de fuzil eram usados para guarnecer esse carro – contou o delegado Eibert Moreira, da 4ª DHPP que atua na região.
Conforme a apuração da polícia, a vítima era moradora do Residencial Ana Paula. Envolvido no tráfico, ela teria ficado com uma dívida com o comando da quadrilha. Sua morte teria sido considerada exemplar entre os criminosos. A polícia já tem suspeitos deste homicídio.
Sem escola, sem posto de saúde...
Se é difícil para quem precisa passar pelos portões dos condomínios, para quem não tem escolha, a rotina é de angústia constante.
– Eu me tranco em casa e fico torcendo para não dar tiroteio. Outro dia, estavam usando drogas em frente à minha casa. O que eu poderia fazer? – questiona uma moradora, que prefere não ser identificada.
A observação dela é de que no Residencial Camila não mais do que 15 moradores – entre as 192 unidades – são os beneficiários do programa Minha Casa, Minha Vida, que receberam as moradias em 2011. Algumas casas foram deixadas para trás e posteriormente ocupadas por pessoas ligadas ao tráfico de drogas. No Residencial Ana Paula, onde foram entregues 416 apartamentos no ano seguinte, a moradora garante que a situação é ainda pior.
– O problema é que eles estão em guerra com o pessoal da Quinta Unidade, e o nosso posto de saúde de referência é lá. Ninguém mais dos condomínios consegue consultar no posto. E os médicos de família também não podem entrar no condomínio – conta a moradora.
Para conseguir algum atendimento médico, restam o Postão da Vila Cruzeiro ou o Hospital da Restinga, e aí o tempo de espera passa de dez horas. E não é o único obstáculo imposto pela presença da facção nos empreendimentos.
– A escola onde a maioria das crianças estudava também fica na outra área da Restinga. Quem não trocou, tirou as crianças da escola porque o perigo de ter uma criança caminhando na rua e começar um tiroteio é o tempo inteiro – diz.
Condomínio novo, tráfico à espreita
Enquanto no pátio, diante de apartamentos ainda vazios, o prefeito Nelson Marchezan (PSDB) entregava as chaves para famílias beneficiadas pelo programa Minha Casa, Minha Vida, uma das futuras moradoras desabafava para uma amiga:
– Será que vamos ficar livres daquele inferno?
No dia 17 de fevereiro foi entregue o Residencial São Guilherme, vizinho do Camila e do Ana Paula, onde a moradora vivia. São 352 novas unidades em 22 blocos. No discurso para alguns dos futuros moradores, o prefeito garantia:
– As pessoas aqui precisam ter a polícia como referência, e não os criminosos. Diferente do que aconteceu nos condomínios vizinhos, aqui vamos garantir um acompanhamento social para que essas famílias sejam assistidas e não fiquem entregues.
Naquele momento, porém, a maior parte dos apartamentos estava sem água. Os criminosos haviam transformado a caixa d'água em piscina. A prefeitura não confirma, mas moradores garantem que parte das 352 famílias sequer assumiu seus apartamentos.
– Ficou vazio, e aqui quando isso acontece, eles tomam conta – diz uma moradora.
Ao menos no momento da entrega dos imóveis, diversos policiais militares e guardas municipais circulavam pela área. A pretensão é manter vigilância privada no São Guilherme. O custo, porém, ficará a cargo dos condôminos.
Marchezan iniciou negociações com a Caixa Federal para adaptar os modelos de futuros financiamentos habitacionais populares.
– Além das moradias, queremos incluir nos projetos a construção de estruturas como creche. Temos déficit na educação infantil e déficit habitacional. Temos que oferecer mais do que teto, mas melhores condições de vida às pessoas – discursou o prefeito.
A ideia é que, com melhor estrutura de serviços, o poder público ocupe o lugar que o tráfico tomou conta na vizinhança.
Promotora aponta omissão do Estado
A promotora Débora Menegat, que coordena o grupo de trabalho dedicado a solucionar a crise nos condomínios da Restinga, não esconde a frustração com o trabalho e deposita esperança na formação de lideranças positivas.
Por que o grupo de trabalho não deu certo até agora?
Débora Menegat – Temos como missão lidar com as consequências da omissão do Estado em prover o mínimo de condições àquelas famílias. Houve o assentamento e não houve qualquer acompanhamento depois. E aí a interferência da criminalidade, aliada à falta de condições básicas de algumas famílias em morarem em condomínios, criou essa realidade. É a reprodução da mesma lógica que elas já viviam, com a facção criando seus próprios guetos. As pessoas se tornaram reféns. Queríamos pensar o problema e resolver de forma multidisciplinar, fizemos algumas ações de cidadania, mas não evoluímos muito.
O que impede esse trabalho?
Débora – Ninguém entra nos condomínios por medo. Existem muitas dificuldades para o município conseguir entrar com serviços lá dentro. A consequência é que, sem uma investigação qualificada do que acontece lá, não tem como intervir como desejamos. Ensaiamos uma eleição de síndicos. Tivemos que desistir porque havia candidatos agindo em nome dos criminosos.
Como as questões como expulsões chegam até vocês?
Débora – O que chega para nós é a partir da Defensoria Pública da União, quando as pessoas descobrem que, pelo fato de terem saído das moradias, perderam o direito de pleitear um novo assentamento. Há uma portaria que prevê o destrato com a Caixa em caso de ameaça, mas para isso, a família precisa ter uma ocorrência policial relatando o episódio. E isso não acontece porque as pessoas têm muito medo de registrar os casos na polícia para não terem seus nomes rastreados pelos criminosos. Ter esses registros seria fundamental para o nosso trabalho de recuperação daquelas moradias. Por isso estamos estudando alguma forma de registro sigiloso dos casos de ameaça e expulsão, sem gerar um inquérito policial individual. E tem ainda os casos de pessoas que repassam os imóveis para sair de lá. Se excluem do direito a uma moradia por desespero.
Quais lições os condomínios Ana Paula e Camila deixam?
Débora – Lamento muito vivermos esse momento. O programa Minha Casa, Minha Vida é muito positivo, mas precisa de reparos. O principal é um acompanhamento qualificado de cada família para que elas não se tornem alvo fácil da criminalidade. Outro ponto é que condomínios grandes como esses não funcionam para famílias da faixa de renda mais baixa. O melhor seriam condomínios pequenos, com poucas unidades.
OS EMPREENDIMENTOS
Residencial Camila: em abril de 2011, foram entregues 192 apartamentos.
Residencial Ana Paula: em abril de 2012, foram entregues 416 apartamentos
Residencial São Guilherme: em fevereiro de 2017, foram entregues 352 apartamentos
A GUERRA
Depois de perder o controle de um ponto de tráfico na região da Restinga Velha para dois grupos rivais, no final do ano passado, uma facção criminosa ficou com os condomínios Camila e Ana Paula como seu único reduto no bairro.
Em virtude do aumento do conflito, a violência dentro dos condomínios aumentou, com a entrada de aliados do grupo criminoso de bairros como o Mario Quintana e a Lomba do Pinheiro em alguns apartamentos.
A facção está em guerra contra duas outras facções que uniram forças para expulsar o grupo da região.