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– Perdi meu filho porque não tinha R$ 200 na mão.
Durante uma hora de conversa, Tatiane dos Santos Fernandes, 35 anos, repete várias vezes a frase, com pequenas variações, demonstrando que, mais de uma década depois, a ferida não está cicatrizada. O caso narrado por ela aconteceu em 2003 e é um dos mais antigos arrolados no inquérito da Polícia Federal (PF) que levou à prisão dos obstetras José Solano Barreto de Oliveira e Alfonso Aquim Vargas.
Na época, Tatiane era atendida por Solano no posto de saúde pública. Quando a gravidez aproximou-se do fim, ele informou que ela deveria pagar R$ 200 para ajudar nos custos da anestesia. A PF ainda investiga se essa cobrança foi lícita ou não, porque houve um período em que não havia anestesista credenciado pelo SUS.
Para fazer o pagamento, Tatiane buscou auxílio na assistência social da prefeitura, mas na sexta-feira em que foi retirar o dinheiro, segundo seu relato, tinha havido um arrombamento no setor responsável e mandaram que ela retornasse na terça-feira.
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Mesmo sem o dinheiro, a jovem baixou no hospital no sábado para fazer a cesariana. Segundo conta, Solano não quis examiná-la:
– Ele só foi me ver no outro dia. Perguntou se eu tinha conseguido o dinheiro da anestesia. Expliquei o que tinha acontecido. "Então vou te deixar com remédio para a dor, e na terça-feira tu vais lá resolver isso. Se tu pegares o dinheiro do auxílio, me procura". Na segunda-feira, comecei a passar mal, mal, não sentia mais meu bebê se mexer dentro de mim. De noite, ele veio me ver e disse que estava tudo bem, que ia me dar alta no outro dia de manhã para resolver o negócio do dinheiro. Na terça-feira, quando as enfermeiras disseram que a minha alta estava pronta, eu disse que não ia embora, porque tinha muita dor.
Mas nem a agonia de Tatiane fez o médico desistir dos R$ 200 que cobrava.
– Elas ligaram para o Solano. Ele disse que só podia vir depois do meio-dia. Quando apareceu, reclamou: "Tu não foste lá fazer o que tu tinhas de fazer? Vou esperar". De tarde, as enfermeiras disseram para ele que eu não estava bem, que não ouviam o coração do bebê. Ele disse que ia vir depois das 18h. Apareceu 20h30min. Dentro da sala, escutei a conversa dele com o anestesista. "Solano, lavo as minhas mãos, não tenho culpa se acontecer qualquer coisa". O Solano respondeu: "Agora temos de consertar" – lembra a vítima.
Criança chegou a nascer, mas era tarde demais
Tatiane conta ter escutado o choro do bebê ao nascer. Logo depois, segundo ela, a pediatra informou que ele tinha nascido depois da hora e precisava ir para a UTI. Passadas algumas horas, estava morto. A mãe está convencida de que hoje teria um filho com 14 anos, se tivesse o dinheiro para repassar ao obstetra:
– Se tivesse pago, ele teria feito a cirurgia no domingo e meu filho estaria vivo. Morreu porque não tinha R$ 200. Entrei em depressão e tive de tomar remédios.
Conforme a PF, Solano foi condenado por homicídio culposo por causa desse caso, em processo individual movido pela mãe.
Tatiane também conta ainda que, antes do parto do quinto filho, em 2013, pediu a Alfonso que fizesse uma laqueadura. O médico cobrou R$ 2 mil mas, como Tatiane não tinha dinheiro, ele não realizou o parto mesmo estando de plantão no hospital. Deixou para a plantonista seguinte.
– Quando a médica chegou, às 7h, perguntou por que ele não tinha feito o parto. "Deixei essa bomba para ti", ele respondeu. Ela disse para eu dar parte na polícia, mas então a bolsa estourou e ela fez a cesariana, sem a laqueadura.
Tatiane nunca se submeteu à laqueadura. Teve duas gêmeas depois do parto de Huesler Gustavo, hoje com três anos. Ao todo, tem oito filhos.
Clique nas imagens abaixo e veja os relatos de vítimas dos médicos investigados:
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CONTRAPONTOS
O que dizem Alfonso Aquim Vargas e José Solano Barreto de Oliveira
Nos depoimentos que deram depois da prisão, negaram todas as acusações, exceto a realização de laqueaduras durante as cesarianas, que disseram ter feito sem cobrar. Não explicaram porque esses procedimentos não eram registrados nos prontuários das pacientes. A defesa dos médicos informou que eles não vão se manifestar por enquanto.
O que diz o Hospital São Patrício
Em nota, informa que "repudia qualquer forma de procedimento ilegal e continua à disposição para contribuir com as investigações".