Depois de investigações desvelarem crimes na industrialização do leite e da água, mais um item batizado entrou na lista de preocupações dos consumidores: a Polícia Federal (PF) revelou escândalo de produção e venda de carnes e similares impróprios para consumo ou até mesmo estragados. O esquema, descoberto em três Estados – Paraná, Goiás e Minas Gerais – envolvia funcionários públicos responsáveis pela fiscalização e empresários que se protegiam e trocavam benesses.
A Operação Carne Fraca cumpriu 309 mandados judiciais nesta sexta-feira, sendo 27 de prisão preventiva e outros 11 de temporária, 77 de condução coercitiva e 194 de busca e apreensão. No Estado, policiais foram a endereços em Gramado, onde uma das suspeitas teria casa. Os investigadores não sabem precisar o tamanho da fraude, qual a extensão da venda de alimentos irregulares ou em quais locais ocorreu a comercialização, mas afirmam ter descoberto um sistema com risco de prejudicar a saúde. Há, ainda, suspeitas de benefícios a PP e PMDB.
Gigantes do setor alimentício, a BRF, dona de marcas como Sadia e Perdigão, e a JBS, de Friboi e Seara, foram implicadas, inclusive com alguns de seus executivos e funcionários presos. Seis mandados de busca e apreensão foram cumpridos na BRF e três na JBS (sendo um na Seara). O núcleo do esquema criminoso era a Superintendência do Ministério da Agricultura (Mapa) do Paraná. Chefes e fiscais, responsáveis por fiscalizar a produção agropecuária e garantir a qualidade dos alimentos, se aliaram a empresários para validar cargas de carnes, linguiças e salsichas, entre outros itens, em desconformidade com os padrões estabelecidos em lei.
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As equipes faziam vistas grossas e assinavam certificados de sanidade frios, muitos dos quais produzidos pelas próprias empresas, usando o sistema do governo federal, enquanto os servidores públicos apenas assinavam, sem fiscalizar. Representantes dos frigoríficos contavam até com senhas do sistema interno do ministério. Em troca, os funcionários públicos recebiam presentes, incluindo carne e itens industrializados, além de propina.
– Bem que tô precisando de umas calabresas – diz o suspeito Carlos Cesar em um dos achaques flagrados por escutas telefônicas.
Ele é apontado pela PF como o "braço direito operacional" de Maria do Rocio, servidora que já ocupou funções de chefia na Superintendência da Agricultura no Paraná e foi presa sob acusação de ser uma das líderes do grupo. Segundo a investigação, Maria teria recebido propina em sua casa, dentro de um isopor, de Flávio Evers Cassou, funcionário da Seara.
– Os fiscais tinham muito cuidado nas ligações para falar em valores. O isopor entregue com dinheiro dentro continha, possivelmente, quantidade vultosa – afirmou o delegado Maurício Moscardi Grillo, que capitaneou as investigações a partir de Curitiba.
Outro suposto líder do esquema criminoso, aponta a PF, é o ex-superintendente Daniel Gonçalves, também detido na sexta-feira. Ele teria usado empresas de consultoria de familiares para receber valores indevidos em larga quantidade, elevando substancialmente o patrimônio. "Daniel Gonçalves parece mais um empresário do que um servidor público que foi superintendente do Mapa no Paraná, sempre se envolvendo em negociatas com empresários", diz o inquérito policial remetido ao juiz Marcos Josegrei da Silva, da 14ª Vara Federal de Curitiba.
A investigação revela o descaso nas indústrias investigadas com a qualidade dos produtos. "Dá para pôr ácido sórbico nela?", questiona um sócio do frigorífico Peccin, do Paraná, referindo-se à linguiça de frango. Uma ex-funcionária confirmou em depoimento que é utilizada substância cancerígena para "maquiar" a cor e o cheiro de carnes estragadas. Houve flagrante também da adição de papelão à carne moída (veja mais detalhes sobre as irregularidades encontradas e os potenciais riscos à saúde).
Em outra evidência, donos de empresas falam em incluir carne de cabeça de porco em linguiças, o que os próprios interlocutores admitem nas conversas ser proibido. Na extensa lista de diálogos, dois investigados falam sobre a tentativa de reaproveitar uma carga de 18 toneladas de peru contaminado por salmonela, bactéria que pode causar doença infecciosa.
Parte desses produtos impróprios era exportada para países como China, Itália e Espanha por algumas indústrias. As empresas faziam as remessas mesmo sabendo do alto risco de devolução da mercadoria. Preferiam essa hipótese a arcar com custos de deixar o produto parado em estoque. Também para essas operações, as indústrias contavam com o serviço de fiscais do ministério, que burlavam esquemas de controle.
Os problemas verificados no Paraná, em Goiás e em Minas Gerais não foram apontados pela PF em outros Estados. O Rio Grande do Sul não teve fábricas de gêneros alimentícios como alvo da Operação Carne Fraca. O delegado Grillo evitou estimar um percentual de produtos impróprios ou contaminados:
– É uma estatística que, se eu falar, estaria sendo leviano. A verdade é que essas empresas não prezam pela qualidade. Muitas dessas carnes não são nem estragadas, mas a gente vê manipulação de certificados para que não ficassem paradas.
Até o momento, a maior parte das provas é fruto de escutas, campanas e depoimentos de denunciantes.
– Na situação de colheita de provas que foi feita no início da investigação, fizemos perícia em um supermercado para não chamar a atenção da empresa. Em várias circunstâncias foram verificadas alterações proibidas pela legislação – afirmou o delegado.
As apurações correram por dois anos e começaram a partir de denúncia de um fiscal agropecuário que citou adulteração de alimentos servidos na merenda escolar no Paraná. Um servidor público também alertou autoridades a respeito da transferência de fiscais sem justificativa aparente.
CONTRAPONTOS
- O que diz a BRF
Por meio de nota, a BRF afirma que "apoia a fiscalização do setor e o direito de informação da sociedade com base em fatos, sem generalizações que podem prejudicar a reputação de empresas idôneas e gerar alarme desnecessário na população".
No comunicado, a empresa, por meio de assessoria de comunicação, afirma que "a fábrica da BRF de Mineiros é uma planta construída em 2006 que produz carne de frango e de peru e responde por menos de 5% da produção total da BRF".
A BRF também diz que o estabelecimento "possui três certificações internacionais que estão entre as mais importantes do mundo: BRC (Global Standard for Food Safety), IFS (Internacional Food Standard) e ALO Free (Agricultural Labeling Ordinance)".
Na nota, a instituição nega acusações de corrupção, afirmando que "não compactua com práticas ilícitas e refuta categoricamente qualquer insinuação em contrário".
- O que diz a JBS
Em comunicado, diz que "não há nenhuma medida judicial contra os seus executivos". Informa que três unidades (duas no Paraná e uma em Goiás) foram alvo de mandados. A empresa afirma cumprir "rigorosos padrões de qualidade", que tem "diversas certificações emitidas por reconhecidas entidades" e se mantém à disposição das autoridades.
- O que diz o frigorífico Peccin
A empresa do Paraná ainda não se pronunciou.
- O que diz o Ministério da Agricultura
Informou que foram afastados 33 servidores, contra quem serão instaurados procedimentos administrativos, e que três unidades nas quais foram verificadas irregularidades foram interditadas. Também declarou que dá suporte à Polícia Federal para as investigações. Ressaltou que verifica qual a extensão e o risco à saúde pública e que o número de fiscais envolvidos é pequeno em comparação ao universo de servidores (cerca de 11 mil no total).
- O que diz o PMDB
A direção do partido informou que desconhece o teor da investigação e não autoriza ninguém a falar em nome da sigla.
- O que diz o PP
Em nota, afirmou que desconhece o teor das denúncias e "apoia minuciosa investigação e o rápido esclarecimento dos fatos".
- O que dizem Daniel Gonçalves, Maria do Rocio, Flávio Evers Cassou, Heuler Martins, Luiz Santamaria Neto, João Arruda, Stephanes Junior, Ronaldo Sousa Troncha e Sérgio Souza
Ainda não comentaram as denúncias.