A investigação que levou à prisão dos ginecologistas Alfonso Aquim Vargas e José Solano Barreto de Oliveira tem na sua origem uma denúncia anônima feita por um estudante de Medicina da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), em junho de 2010.
Atuando como residente no Hospital São Patrício, o jovem procurou o Ministério Público Federal (MPF) para relatar irregularidades que teriam sido cometidas por Alfonso. O estudante contou ter testemunhado cobranças ilegais por procedimentos integralmente cobertos pelo SUS.
A abertura do inquérito, no entanto, só ocorreu há três anos, em fevereiro de 2014. A demora deveu-se a uma pendência sobre se o caso era da esfera federal ou da alçada estadual. Quando o MPF finalmente pediu à Polícia Federal (PF) que iniciasse a apuração, agentes de Uruguaiana começaram a fazer incursões em Itaqui à procura de vítimas.
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– Nós só tínhamos o nome do médico e a informação de que estava acontecendo alguma coisa irregular. Estávamos meio perdidos no início, porque a denúncia era vasta e confusa. Por isso, acabou demorando até chegarmos às vítimas. Talvez os casos mencionados pelo residente nem sejam aqueles que nós desvendamos – diz a delegada Ana Gabriela Becker Gomes, paranaense de 37 anos que atua desde 2008 na PF de Uruguaiana.
A partir das várias viagens a Itaqui, os agentes começaram a fechar o foco da investigação. Perceberam que as cobranças envolviam cesarianas e laqueaduras. No primeiro caso, os médicos realizavam o procedimento pelo SUS, que bancava todas as despesas, mas exigiam das gestantes pagamento por fora. Lesavam não só as pacientes, mas também o sistema público, porque em muitas situações a cesariana não era necessária.
No caso das laqueaduras, a cirurgia era totalmente clandestina. O Hospital São Patrício sequer é credenciado pelo SUS para realizar esse serviço. Além disso, a legislação brasileira proíbe que se realize o procedimento durante a cesárea. Mas os médicos ignoravam a norma. Cobravam das mulheres para esterilizá-las durante o parto e, nos prontuários, registravam apenas a cesariana – no Brasil, a notificação de laqueaduras é obrigatória. Além disso, como o método não pode ocorrer em caso de parto normal, os médicos forçavam cesáreas, de modo a faturar.
Recorte de um mês facilitou a localização de vítimas
A investigação deu grande salto em março do ano passado, quando Ana Gabriela solicitou ao Hospital São Patrício registros de todas as cesarianas feitas no mês anterior. Eram 18. Com as informações em mãos, os policiais saíram à procura das mães. Metade delas foi localizada. Dessas nove mulheres, uma fez parto particular, outra não foi cobrada e uma terceira não quis prestar declarações. As seis restantes revelaram que o médico exigiu pagamento.
– Acontecia assim: a paciente, por falta de conhecimento, por receio de entrar em trabalho de parto, procurava o médico e pedia cesárea. Até aí não tem problema. O médico pode agendar cesárea eletiva, mas isso é particular. O médico explicava que o valor girava em torno de R$ 6 mil. Quando a mulher dizia que não tinha esse valor, ele respondia: "Então tem outra forma. Te interno pelo SUS e tu me dás R$ 1,5 mil. Tu me pagas aqui, sem recibo, e ninguém pode saber". No dia marcado, constava no prontuário que aquela gestante estava em trabalho de parto prolongado ou algum outro motivo que justificasse o pagamento pelo SUS, porque o sistema só paga cesárea de emergência – explica a delegada.
Mas a prática não se resumia a isso. Segundo a apuração da PF, mulheres que pretendiam fazer parto normal, mas chegavam ao hospital atendendo aos critérios para se submeter a cesariana, também eram informadas de que deveriam pagar. Em muitos casos, os médicos indiciados as deixavam sofrendo por longos períodos, sem realizar o procedimento, até que elas concordassem em entregar o dinheiro.
Clique nas imagens abaixo e veja os relatos de vítimas dos médicos investigados:
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CONTRAPONTOS
O que dizem Alfonso Aquim Vargas e José Solano Barreto de Oliveira
Nos depoimentos que deram depois da prisão, negaram todas as acusações, exceto a realização de laqueaduras durante as cesarianas, que disseram ter feito sem cobrar. Não explicaram porque esses procedimentos não eram registrados nos prontuários das pacientes. A defesa dos médicos informou que eles não vão se manifestar por enquanto.
O que diz o Hospital São Patrício
Em nota, informa que "repudia qualquer forma de procedimento ilegal e continua à disposição para contribuir com as investigações".
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OS CRIMES
Corrupção
- Os médicos – dois obstetras e um anestesista – foram indiciados por corrupção por serem funcionários públicos cobrando valores irregulares. A secretária foi indiciada por participação em corrupção.
Associação criminosa
- A Polícia Federal (PF) entendeu que os quatro indiciados se associaram de forma organizada com fins de cometer crimes.
Estelionato
- O crime teria sido cometido por causa de falsificação de documentos, como os prontuários em que se dizia que as gestantes necessitavam de cesariana, quando isso não correspondia à verdade. A secretária não entra nesse crime.
Esterilização cirúrgica ilegal
- A realização de laqueaduras durante cesarianas, que teriam sido realizadas clandestinamente pelos médicos, não é permitida pela legislação. A secretária também está isenta desse crime.