Juiz da Vara de Execução Penal do Tribunal de Justiça do Amazonas, Luís Carlos Valois esteve frente a frente com o terror no primeiro dia de 2017. Chamado às pressas pelo titular da pasta da Segurança Pública estadual, Sérgio Fontes, ele ajudou a negociar a libertação de reféns no Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj), em Manaus, palco de um massacre que deixou 58 presos mortos.
O episódio faz parte da guerra envolvendo três facções criminosas: de um lado estava o Primeiro Comando da Capital (PCC), criado em São Paulo e que se expandiu para quase todo o país e até ao Exterior. Do outro, a Família do Norte (FDN), uma organização local, que recebeu apoio do Comando Vermelho, oriundo do Rio de Janeiro. Apesar de ter negociado a libertação de reféns com líderes de um dos grupos, o magistrado repudia qualquer forma de reconhecimento de parte do Estado a essas organizações.
Valois esteve em em fevereiro em Porto Alegre, onde participou do seminário "Violência nas ruas e crise nos presídios", na Câmara de Vereadores. Em entrevista à editoria de Segurança de Zero Hora e Diário Gaúcho, também criticou a instalação de presídios federais – uma das medidas previstas no Plano Nacional de Segurança Pública, do Ministério da Justiça e da Segurança Pública, para o Rio Grande do Sul.
Zero Hora – O senhor acabou sendo personagem em um dos episódios mais cruéis da história do sistema penitenciário no Brasil. Como foi a sua participação?
Luís Carlos Valois – No dia 1º de janeiro à noite eu estava em casa e recebi uma ligação do secretário de segurança. Fiquei surpreso, pois o secretário nunca tinha me ligado na vida. Aí percebi que era algo sério. A segurança pública deveria ter uma espécie de conselho, para decidir e agir em determinadas ocasiões. Quando cheguei no complexo penitenciário, a polícia estava desnorteada. Logo me disseram que os presos amotinados estavam nas dependências do regime semiaberto. Aí, vi que a rebelião poderia durar muito, pois lá eles tinham comida para vários dias. Logo na entrada, vi imagens e cenas dantescas. Os presos colocavam os corpos esquartejados perto das portas. As caixas de quentinhas estavam cheias de pedaços de corpos carbonizados.
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ZH – O senhor ajudou a negociar o fim da rebelião. Quem foi o interlocutor do lado dos presos?
Valois – Normalmente, nesses casos, costumam colocar um laranja para que os líderes não sejam identificados. Mas o preso que negociou era alguém com inteligência acima da média, bem articulado. Não parecia ser um laranja ou robô. Mostrava que sabia o que estava dizendo e o que estava fazendo. Parecia ser realmente um líder.
ZH – O senhor é favorável a negociações do Estado com líderes ou facções?
Valois – Naquele episódio havia vidas em poder dos presos rebelados. A nossa preocupação era tirar os funcionários que estavam correndo risco de morte. Mas em situações normais, não admito lideranças nem facções. Se eu perceber liderança de preso, eu mando cessar na hora. Se eu perceber alguma regalia ou benefício, mando punir os responsáveis. Se eu ouvir falar que algum servidor negociou com facção, mando prender na hora. Como juiz de Direito, não legitimo mandato de facção.
ZH – Mas, na prática, as facções estão empoderadas em várias prisões do país.
Valois – Se não tivessem dado confiança para elas, não teriam poder algum. Não tinha crime organizado. O que temos nos presídios é um monte de "Joãos", "Zés de chinelo" ou pé no chão. Aí, dão confiança a eles, dão tratamento diferenciado, e eles começam a dizer: 'Agora não sou mais o Zé de Chinelo. Sou o líder de facção'. Preso tem que ser tratado como preso. Não tem chefe de nada.
ZH – E como esses "Zés" e "Joãos de chinelo" ou descalços viram líderes?
Valois – Foram as penitenciárias federais que permitiram a pulverização do que se chama de crime organizado. Lá no Norte, quando os presos incomodavam nos presídios, eram mandados para uma prisão federal. Quando voltavam, diziam que tiveram contato com líderes do Comando Vermelho, do PCC, e conquistavam status perante os outros presos. Foi o Estado brasileiro que criou esse problema todo. Foi o Estado que deu status a esses líderes.
ZH – Mas diante da existência das facções, o senhor é favorável à separação dos presos tendo como critério o grupo ao qual pertencem?
Valois – É um descumprimento da Constituição Federal por parte do Estado separar por facções. Os administradores de presídios aceitam separar por facções para não perder o emprego. Se houver mortes e rebeliões nos presídios, podem perder o emprego. Então, separam por facções para evitar esse tipo de problemas.
ZH – Um dos problemas que favorecem a criação e o fortalecimento de lideranças e facções é a superlotação das prisões. Tem solução para isso?
Valois – Nosso sistema não evolui porque não conseguimos pensar em outra coisa que não seja a prisão. Se hoje parassem de prender, daqui a 50 anos estaríamos mais perto de acabar com a criminalidade. As prisões aumentam a criminalidade. Estamos pagando para piorar as pessoas e promovendo reuniões de criminosos. Como podemos ensinar uma pessoa a viver em liberdade com ela presa? A prisão precisa ser menos criminógena, porque quem está lá aprende a ser mais criminoso. Por exemplo: a gente pune quem está vendendo drogas nas ruas prendendo em um local onde são vendidas drogas. E cada vez se prende mais e mais aumenta o número de crimes.
ZH – Por que está crescendo tanto a população carcerária no Brasil?
Valois – Com a Lei das Drogas de 2006, os policiais passaram a enquadrar usuários como traficantes. Quem define quem é usuário e quem é traficante é o policial. Ele foi posto em uma guerra e, se está numa guerra, é parcial. Prende aquele que ele acha que é criminoso. Deixa de investigar crimes grandes para prender por flagrantes de drogas. A guerra às drogas é a coisa mais absurda do Direito, Prendem quem está vendo uma substância, e ficam soltos, por falta de investigação, estupradores, autores de latrocínios, assaltantes e homicidas. É um absurdo.