Foi em meados de novembro que um morador do bairro Aparício Borges, zona leste de Porto Alegre, foi procurado por pessoas interessadas em comprar um imóvel na rua ao lado do Presídio Central. As duas casas que ele tinha em um mesmo terreno não estavam à venda, mas a proposta em dinheiro vivo agradou e o negócio foi fechado por valor entre R$ 150 mil e R$ 200 mil. Com a aquisição, a facção Os Manos colocou em andamento a fase de logística do plano que previa a construção de um túnel para a fuga de, pelo menos, 200 apenados. Na tarde desta sexta-feira, os dois imóveis foram lacrados pela Polícia Civil após o acesso ao túnel ser aterrado – a entrada foi fechada com cimento no dia da descoberta da escavação.
Esse e outros detalhes fazem parte da apuração da 3ª Delegacia de Investigações do Narcotráfico, que segue tendo desdobramentos. Por enquanto, a polícia acredita que o homem que vendeu as duas casas não tem qualquer ligação com o crime organizado. Inclusive, o valor estaria dentro da faixa de mercado. E o fato de serem imóveis praticamente grudados beneficiou o plano: uma casa, de oito peças, era usada como moradia e era nela que os pedreiros entravam, como se ali fosse o trabalho. Só que na área dos fundos foi feita uma abertura levando para a moradia ao lado, onde, então, era escavado o túnel. Todos os cômodos dessa segunda casa foram usadas para armazenar a terra retirada do buraco.
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Depois do flagrante feito na quarta-feira, quando o Departamento Estadual do Narcotráfico (Denarc) invadiu o local e prendeu oito pessoas, dezenas de informações estão se agregando ao inquérito. Os suspeitos capturados – sete homens e uma mulher – se negaram a prestar depoimento. Mas o perfil deles é revelador. Dos oito, cinco não têm qualquer antecedente policial, sendo que três deles são parentes: dois são irmãos e um deles estava acompanhado pelo filho na missão de construir o caminho que libertaria integrantes da facção.
Dois homens têm antecedentes por crimes como homicídios, ameaça, lesão corporal e furtos. Já a mulher, que era usada para simular aparência de normalidade à casa – ela tem um filho, que saía para ir à escola –, tem antecedentes por tráfico de drogas, ameaça e lesão corporal e é companheira de um detento.
– Pelo perfil deles, a maior parte sem antecedentes, se vê a forma de domínio da facção. Imagina um pedreiro sem antecedentes e com mais familiares envolvidos no plano se vai falar algo, se vai delatar. Claro que não, pois correriam risco de vida. Queremos identificar todos que estiveram na casa. Há suspeita de que outros trabalharam lá por um tempo e foram substituídos – explica o delegado Mário Souza, diretor de investigações do Denarc.
Campana policial sempre no mesmo local
O trabalho de monitoramento da polícia no bairro Aparício Borges não se limitou a observar a movimentação na casa. Todas as ocorrências policiais da região foram analisadas durante o trabalho. A estratégia visava a tentar identificar registros que saíssem do comum, situações como moradores relatando barulho excessivo, a presença de homens armados ou outras queixas. Isso era necessário porque a polícia não tinha certeza do local onde o túnel estaria sendo feito.
– Eram extremamente ordeiros, respeitavam horários, não faziam festa, churrascada, gritaria, não bebiam. Trabalhavam muito focados, o que, mais uma vez, mostra o direcionamento do crime organizado. Eles não cometeram erros – destaca Souza.
De fato, a polícia teve dificuldades para descortinar a trama e identificar o local. A informação inicial sobre um plano de escapada em massa do sistema prisional, e que motivou a abertura de inquérito em dezembro pelo Denarc, surgiu em meio a investigações de tráfico de drogas. Primeiro, policiais monitoraram por 15 dias as imediações da Penitenciária de Alta Segurança de Charqueadas (Pasc). Depois, com mais detalhes sobre a quadrilha que seria beneficiada, foi possível mirar a investigação para a região do Presídio Central, onde estão os líderes mais importantes da facção Os Manos.
Outra estratégia da polícia para observar a casa sem chamar a atenção foi, justamente, tentar não chamar a atenção. Ao contrário de outros trabalhos, em que policiais trocam de carro todos os dias ou até se disfarçam de prestadores de serviço, neste caso, usavam o mesmo veículo, sempre parado no mesmo ponto, como se fosse da comunidade. Nunca ninguém desconfiou.
Ao apresentar detalhes da investigação em entrevista coletiva na quarta-feira, a polícia disse ter "contexto probatório forte sobre o financiamento do plano de fuga". Agora, trabalha para identificar eventuais responsáveis técnicos da obra, outros suspeitos que tenham atuado como pedreiros, e as pessoas que financiaram todo o esquema, avaliado em mais de R$ 1 milhão.
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