A barbárie que assustou brasileiros na virada do ano em Manaus, com a morte de 60 presos, foi reprisada, na sexta-feira, na capital do Estado vizinho, Boa Vista. Agora, Roraima registrou o massacre de pelo menos 31 detentos na Penitenciária Agrícola de Monte Cristo. Em entrevista, o secretário de Justiça e Cidadania, Uziel Castro, afirmou que os presos mortos durante a chacina promovida pelos integrantes do Primeiro Comando da Capital (PCC) não tinham ligação com o crime organizado. Segundo Castro, as mortes não foram decorrência de um confronto entre facções, mas "uma ação isolada de membros do PCC contra pessoas que não eram ligadas a nenhuma facção".
Disputas pela hegemonia do tráfico de drogas no norte do país são apontadas como possíveis causas das duas chacinas, no Amazonas e em Roraima. Mesmo diante da afirmação do secretário, especialistas apontam que, no epicentro dos massacres, está o embate de forças entre facções enraizadas em São Paulo e Rio de Janeiro: o Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Comando Vermelho (CV), grupos criminosos que rivalizam não somente nesses dois Estados no Norte, mas também em Rondônia, na fronteira com a Bolívia, e no Acre, vizinho de Bolívia e Peru, países produtores de cocaína.
Mestre em sociologia e integrante do Grupo de Pesquisa Violência e Cidadania da UFRGS, Francisco Amorim explica que é importante para o crime organizado ter o domínio dos Estados do Norte para, assim, controlar rotas terrestres por onde entram as drogas no Brasil, alertando para necessidade de ações na região.
– É uma zona importante para o tráfico internacional que entra no país via terrestre. Então, aquela é uma área que pode ter novos problemas – disse Amorim.
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O coordenador do Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência da Universidade Federal do Rio de Janeiro, professor Michel Misse, segue a mesma linha de raciocínio:
– Esses grupos estão em busca da federalização, da nacionalização. E se não houver nenhuma atitude, isso vai prosseguir.
Segundo os especialistas, as tragédias em sequência exigem que olhares se voltem para o sistema prisional brasileiro, e que medidas sejam adotadas imediatamente para que os massacres não se transformem em escalada de violência sem precedentes por mais Estados.
Presídios superlotados propensos a rebeliões
O governo do Acre, por exemplo, alega que há um ano intensifica ações de cunho preventivo nas unidades prisionais da capital e do Interior.
"Reforço na vigilância nas guaritas externas e internas dos ambientes de encarceramento, capacitações de servidores, contratação de pessoal da reserva remunerada da Polícia Militar e extração de presos, apontados como lideranças de facções", afirma o governo do Estado em nota. Procurado, o Estado de Rondônia não respondeu aos questionamentos da reportagem.
Sandro Cabral, professor do Insper e doutor em Administração pela Universidade Federal da Bahia (UFB), com tese sobre a privatização de prisões, reforça que os massacres nas duas cadeias são passíveis de se repetir em todo o país, dado o problema enfrentado pela União em relação ao sistema prisional.
– A maior parte dos presos tem algum grau de tratamento inadequado. Os presídios estão superlotados. Então, o país como um todo está propenso a chacinas. Há risco em potencial de novas rebeliões em todas as casas prisionais com superlotação.
Falta de controle em penitenciárias
Combater esse problema, segundo o especialista, passa por identificar quem são as lideranças das facções e removê-las, além de melhorar a gestão e a estrutura das penitenciárias.
– Não se pode deixar a faceta da vingança falar mais alto – opina Cabral.
– Se tu tens uma tentativa de domínio nacional e ela está se dando dentro dos presídios, temos de assumir as casas prisionais de forma eficaz. A falta de controle das penitenciárias será fatal para a segurança nacional – acrescentou Amorim.
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Conforme Misse, os reflexos das cadeias dominadas por facções são vistos na rua, com a explosão da violência por meio de decapitações e grupos de extermínios espalhados por grandes cidades.
– As rebeliões nos presídios são antigas. Começaram, na verdade, no Rio de Janeiro nos anos 70. A novidade é que, agora, estão ligadas a facções – avaliou.
O bairrismo gaúcho, conhecido Brasil afora, tem influência, inclusive, na criminalidade. Esse distanciamento afasta do Rio Grande do Sul organizações criminosas originadas em outros Estados. Para Francisco Amorim, integrante do Grupo de Pesquisa Violência e Cidadania da UFRGS, uma disputa entre PCC e Comando Vermelho em terras gaúchas não deve acontecer em curto prazo.
– Aqui há uma guerra particular, apesar de grupos locais terem contato com outras facções. No Rio Grande do Sul, a batalha é travada na rua em razão de muitos líderes estarem presos. Se acontecer algo parecido com Amazonas e Roraima, não seria por influência do PCC ou Comando Vermelho – disse.
Sandro Cabral, doutor em Administração pela Universidade Federal da Bahia, diz que o governo gaúcho deve manter o mesmo nível de atenção dos demais Estados em relação a rebeliões:
– Eu, se fosse secretário, não estaria mais tranquilo do que os colegas do Norte. As fações podem querer aproveitar esse momento para conseguir benefícios por meio de rebeliões.
Diferente da Colômbia, parecido com o México
A forma de atuação das facções no Brasil se assemelha com a Colômbia da década de 70 apenas na disputa pelo domínio das rotas de tráfico de drogas e pela ostentação de poder por meio de assassinatos. Enquanto o país do narcotraficante Pablo Escobar era aterrorizado por ataques terroristas e por guerra que envolvia o governo, no Brasil a briga é entre facções, sem cunho político. Aqui, também não há um líder com o apelo popular do "senhor da droga colombiano".
– O crime no Brasil e na Colômbia têm características diferentes. No Brasil, não há uma liderança carismática que tenha o suporte da população como Escobar tinha. Temos série de líderes que ninguém sabe direito quem é – disse Cabral.
Michel Misse lembra que na Colômbia havia mais violência e a atuação de carteis.
– As facções brasileiras têm estrutura de rede de acordo, de parcerias, e trabalham com o varejo.
Já as semelhanças com o México são maiores e passam por esquartejamentos, exposições de cabeças na rua e disputa entre grandes facções nacionais pelo controle das rotas.
– O repertório dos brasileiros é o mesmo dos mexicanos – comparou Amorim.