Uma facção ligada ao tráfico de drogas em Porto Alegre está estendendo seus tentáculos para outros ramos de atividades e territórios. Para além das decapitações e esquartejamentos que assombraram periferias ao longo de 2016 e das centenas de mortes relacionadas à guerra do tráfico, um dos grupos, como se sentisse dono das ruas, está extorquindo profissionais do sexo.
Para se prostituir, é preciso pagar taxa diária (entre R$ 20 e R$ 30), e o não cumprimento pode resultar em morte. Como ocorreu em 2015, na Zona Norte, onde uma transexual foi assassinada.
Na Zona Sul, mulheres revelam que "pagam para não se incomodar". Na área central, uma avenida separa duas situações: de um lado, há cobrança. Do outro, não.
– Mais do que explorar a prostituição e capitalizar o crime, a facção diversifica os seus mercados por meio da extorsão – analisa o mestre em sociologia e integrante do grupo de Pesquisa Violência e Cidadania da UFRGS Francisco Amorim.
Zero Hora não especificou a localização exata dos pontos de prostituição para não colocar os entrevistados em risco.
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Em uma rua da Zona Sul de Porto Alegre, durante uma tarde de sábado, um grupo de cinco mulheres enfrenta um sol forte à espera de clientes. Mal a reportagem começa a conversa com elas, um carro com quatro jovens a bordo se aproxima. Após alguns segundos de observação, o motorista arranca.
– Eles são de uma facção do tráfico. Passam aqui todos os dias e cobram R$ 20 de cada uma – revela uma das mulheres, antes mesmo de ser questionada a respeito.
A tranquilidade que demonstram ao abordar o assunto denuncia o conformismo com a situação, embora, de acordo com elas, a cobrança de pedágio acabe pesando no faturamento do dia.
– A gente paga e não se incomoda. É melhor assim. Mas, por exemplo, se só der um programa de R$ 60 em um dia, eles ficam com um terço da grana – explica outra.
A cobrança, dizem elas, costuma ocorrer no final do dia. Mas, às vezes, de acordo com as mulheres, "eles dão incertas e sugestas" (realizam visitas inesperadas e intimidam).
Dois dias depois, a reportagem retorna ao local. Desta vez, há apenas uma jovem, de 22 anos, que não estava no sábado. Inicialmente, ela resiste em falar. Depois, explica que é casada e que mora longe dali.
Mas seus receios não param por aí. Nos novos tempos da prostituição, de acordo com ela, quanto menos falar, menores serão os riscos. Por isso, confirma a cobrança de pedágio, mas não detalha para quem a taxa é paga:
– É para uma facção, mas não posso dizer qual – resume.
Do outro lado da rua, um jovem com calça jeans cintura baixa, cueca à mostra, de tênis e sem camisa observa a conversa.
Ao vê-lo, a mulher, sem esconder o nervosismo, para de falar. Minutos depois, o mesmo jovem é flagrado uma quadra adiante, sinalizando com a camisa na mão para que todas as mulheres que estavam trabalhando naquela rua se aproximem dele para uma reunião.
Em uma área próxima ao Centro da Capital, a lei do silêncio parece prevalecer. Uma pichação na parede de um dos prédios confirma a presença da facção na área, mas quando o assunto é posto em pauta, as prostitutas que trabalham por ali se calam. Não confirmam nem negam a cobrança de pedágio.
Basta, porém, atravessar uma grande avenida que a situação muda radicalmente. Uma mulher, bem falante, mapeia os territórios, de acordo com o domínio exercido em cada um deles.
– Daquela rua para lá e da avenida para cima é cobrado. É uma mulher que cobra e ela trabalha para uma facção – explica.
A guerra entre duas facções com atuação em Porto Alegre, que foi acirrada este ano, acaba beneficiando as mulheres no lado da avenida em que trabalha a entrevistada. O local fica próximo a uma área dominada por um grupo rival daquele que estabeleceu os pedágios.
– Aqui a gente tem passe livre. Não cobram, pois o pessoal da vila controla essa rua e, então, é tudo com eles. Eles que cuidam essa área e deixam as meninas trabalhar à vontade. Se acontece problemas, como brigas, é entre nós mesmas – explica.
Tendência é se capitalizar, diz especialista
A extorsão de profissionais do sexo por uma facção criminosa deve servir de alerta para as autoridades da segurança pública, na opinião do mestre em sociologia e integrante do Grupo de Pesquisa Violência e Cidadania da UFRGS Francisco Amorim. De acordo com ele, o fenômeno tende a criar novos focos de violência pela cidade.
– A situação reflete um fenômeno muito comum no crime organizado que é começar a agir como uma holding (uma empresa controlando várias outras). A lógica parece ser a expansão para outras atividades.
Amorim diz ainda que todos os grandes cartéis criminosos, em diferentes partes do mundo, tendem a agir em outros mercados.
– É uma estratégia de empoderamento. Nesse caso específico, o objetivo parece ser conquistar novos territórios além das comunidades em que atuam – explica.
O especialista aponta também como causa do fenômeno a busca de outras fontes de renda, em um mercado ilícito com uma concorrência muito acirrada.
– Porto Alegre tem quatro ou cinco grupos rivalizando na venda de drogas. Então, a tendência é que buscam se capitalizar em outros mercados.
Crimes que escancaram pedágio
Dois crimes – um homicídio e uma tentativa – confirmaram à polícia a cobrança de pedágio por uma facção criminosa para que mulheres e travestis possam se prostituir em ruas de Porto Alegre.
O assassinato ocorreu na Zona Norte, no ano passado. Na madrugada de 4 de junho, a transexual Andréia Amado, 29 anos, cujo nome no registro oficial era Andrey Felipe Amado, foi morta na Rua Câncio Gomes, próximo à esquina com a Rua São Carlos, no Bairro Floresta.
Uma das suspeitas da Polícia Civil é que Andréia não fosse o alvo, e seu assassinato tenha sido uma forma de intimidação de parte de traficantes.
Andréia foi morta com quatro tiros por dois jovens que a abordaram na rua, durante a madrugada. Com as investigações, a polícia descobriu que a dupla já havia abordado a transexual cerca de uma hora antes. Queriam informações sobre uma travesti que controlava aquele ponto. Quando os dois jovens retornaram, ao não encontrarem o gerente, acabaram matando Andréia.
Por essa linha de investigação policial, o crime teria sido encomendado por traficantes que exigiam que o gerente do ponto lhes pagasse taxas.
Meses depois, na Zona Sul, uma jovem conseguiu escapar após criminosos terem jogado gasolina em suas roupas para atear fogo. Passados alguns dias, ela decidiu denunciar.
A partir desse caso, o delegado Rodrigo Pohlmann, à época titular da 4ª Delegacia de Homicídios, tomou conhecimento de que vários jovens, de ambos os sexos, são obrigados a pagar a taxa à facção criminosa para se prostituírem.
– O grupo chega a contratar prostitutas e travestis para que façam a cobrança – afirma o delegado.
De acordo com Pohlmann, existe até uma tabela de valores cobrados: mulheres pagam R$ 30 para trabalhar à noite, e R$ 20, durante o dia. Das travestis, são cobrados R$ 30, independentemente do turno.
Exercendo atualmente o cargo de diretor do Departamento de Inteligência da Secretaria da Segurança Pública, Pohlmann avalia os riscos da expansão das facções.
– Eles vão estendendo os tentáculos. Para negócios lícitos e ilícitos, como táxis, Uber, revenda de automóveis e muitas outras formas de lavagem de dinheiro.
O delegado diz que é necessária uma forte reação de parte das polícias.
– A fórmula é combater essas facções, identificando toda essa cadeia de atividades e qualificando-as por todas.
Os dois crimes e a expansão da facção, admitida pela própria polícia, afastaram das ruas uma travesti de 52 anos (14 dos quais como profissional do sexo).
Ela não chegou a ser abordada por integrantes do grupo criminoso. Decidiu se antecipar para evitar a extorsão. De acordo com ela, os prejuízos financeiros e os riscos provocados pela cobrança de pedágio "são desestimulantes". Leia ao lado a entrevista com a travesti.
Entrevista com travesti que largou a profissão
Em entrevista, a travesti que abandonou as ruas contou sobre o medo que paira sobre profissionais do sexo que atuam na Zona Norte da Capital.
Como você ficou sabendo da cobrança do chamado pedágio para que profissionais do sexo atuem nas ruas de Porto Alegre?
Eles estiveram umas três vezes na minha área, falaram com outras e a partir dali começaram a cobrar.
Há quanto tempo?
Faz uns cinco meses.
E qual foi a sua reação?
Decidi me afastar, antes mesmo de eles falarem comigo. Não valia mais a pena ter que ficar repassando dinheiro e ainda por cima correr risco de levar tiros.
Tu sabes quanto estão cobrando?
Cobram R$ 30 por noite. Sem choro.
E se não houver programa?
A dívida acumula. Na noite seguinte, eles cobram R$ 60.