Mãe de jovem assassinado em festa há oito anos anos em Porto Alegre desistiu de aguardar por justiça. Em 2014, após seis anos sem que a Polícia Civil identificasse quem puxou o gatilho, o Ministério Público pediu o arquivamento do caso. O mesmo ocorreu em 9,6 mil processos que ficaram sem solução entre 2011 e 2015 no Rio Grande do Sul. Segundo levantamento do Tribunal de Justiça, ao qual a ZH teve acesso, mais da metade dos processos de homicídio e tentativas que chegaram às varas do Júri foi arquivada por falta de autoria ou fragilidade nas provas.
A jornalista Maria Isabel Fonseca Santos festejou a chegada dos 49 anos, em 18 de outubro de 2008, ao lado do filho Igor Santos Carneiro. O jovem de 18 anos cursava Psicologia e Direito, falava três idiomas, era músico, poeta e a enchia de orgulho. Durante a comemoração, o filho fez serenata, cantou Elis Regina, Cássia Eller e Pavarotti. Foi a última vez que Maria Isabel falou com o filho.
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No dia seguinte, o jovem foi morto com um tiro na cabeça após tumulto e tiroteio em uma festa na Associação dos Funcionários do Inter (Asfinter). Amigos viram um suposto segurança atirar na direção dele.
– Não sei dizer o que sinto, nunca consegui definir muito bem. Acho que sou o retrato do Brasil, não acredito em Justiça, em investigação policial e em nada disso. Não tenho mais expectativa, se tivesse enlouqueceria – traduziu a mãe.
Passaram-se seis anos, a Polícia Civil não identificou o autor do disparo e o Ministério Público (MP) solicitou o arquivamento do caso. O processo judicial que investigou a morte de Igor é um dos 9,6 mil casos de homicídios e tentativas arquivados nos últimos cinco anos no Estado. A fatia corresponde à metade (51%) dos 18,8 mil processos que chegaram à primeira instância nesse período.
Outros 3,5 mil processos resultaram em condenação (19,1%) e 3,5 mil em absolvição (18,6%). Nos outros 10%, foi extinta a punibilidade (quando o réu morre ou o crime prescreve) e, em menos de 1%, o tipo de crime foi alterado.
Os dados aos quais a reportagem teve acesso são do Tribunal de Justiça (TJ) e correspondem ao ano em que a sentença foi dada pelas varas do Júri. Polícia Civil, MP e TJ atribuem o arquivamento à falta de autoria. A lei do silêncio que impera em casos de assassinato envolvendo o tráfico e a prova pericial frágil nas situações nas quais o homicídio é cometido em local ermo são algumas das justificativas. Crimes antigos também engordam a estatística, já que processos podem levar anos para chegar ao fim.
– O arquivamento gera impunidade. A polícia aumentou o percentual de resolução dos inquéritos nos últimos anos, só que não tem sido suficiente (para mudar a estatística). Muitas vezes, não é possível formular a prova, porque as pessoas desaparecem, não há vestígios, o local é ermo. Em outras situações, as testemunhas se recusam a falar por medo, até porque o Estado não tem como dar proteção à testemunha – avalia o juiz-corregedor do Tribunal de Justiça, Alexandre de Souza Costa Pacheco.
O delegado Paulo Grillo, diretor do Departamento Estadual de Homicídios e Proteção à Pessoa, aponta a lentidão do processo como elemento que contribui para os arquivamentos nos crimes contra a vida.
– Quanto mais passa o tempo do fato principal, mais as provas se apagam – avalia.
No caso de Igor, como o autor não foi reconhecido e, segundo o MP, a empresa de segurança da festa não colaborou na investigação, o processo foi encerrado.
Mãe não sabia que caso de filho foi arquivado
Em uma sala da Vara do Júri da Capital, caixas guardam histórias violentas que envolvem mortes ou tentatativas de homicídio no RS. Uma delas é a do processo judicial que descreve a cena da noite de 19 de outubro de 2008, um dia após o aniversário de Maria Isabel Fonseca Santos. Naquela data, Igor Santos Carneiro, 18 anos, filho dela, foi a uma festa com amigos para nunca mais voltar. O evento foi na Asfinter, organizado por empresa terceirizada, que, conforme o processo, não contava com seguranças suficientes e havia excedido a lotação.
Um tumulto se formou na madrugada quando um grupo de jovens tentou invadir o lugar. Ouviram-se tiros e as pessoas começaram a gritar e a correr. Igor apontou na direção de um segurança e disse: "Vamos ficar perto, ele vai nos proteger". Mas quando se virou para os amigos, foi atingido por um disparo na têmpora direita. Na época do assassinato, falava-se em bala perdida, mas testemunhas descreveram que foi execução.
– Bala perdida é aquela que cai na sarjeta. Deviam acabar com esse termo, pois estimula a impunidade. Alguém puxou o gatilho e aquela bala foi a única extraída do corpo de um ser humano: ela foi achada e não perdida – lamenta Maria Isabel.
Como nem as testemunhas e muito menos a empresa identificaram o suposto funcionário, o caso foi arquivado em 2014. O Ministério Público concluiu que houve falha na segurança. Testemunhas disseram que o autor seria um policial à paisana, mas a informação nunca foi confirmada.
Maria Isabel ficou sabendo do arquivamento pela reportagem, embora não esperasse mais por justiça. Durante todos esses anos, a jornalista foi chamada pela investigação duas vezes: uma para depor na polícia e outra no MP. Depois que perdeu o filho do meio, ela fundou a ONG Ficar – Instituto Igor Carneiro com o apoio de amigos, para lutar pela segurança em festas promovidas para o público jovem. Mais tarde, o projeto passou a atuar em outras frentes e ela decidiu se desligar.
Maria Isabel vendeu a casa onde morava com o filho na Capital e hoje vive em Santa Catarina. Recentemente, ela retornou a Porto Alegre para lançar um livro de poesias com outros autores na Feira do Livro.
– É claro que a gente aprende a viver com a dor, mas ela não desaparece, é para sempre. Não tem recuperação, falta um pedaço, é uma amputação. Mãe é um ser divisível entre o amor dos filhos, não tem como repor, é um amor único – descreve Isabel.
Igor, como a mãe, tinha gosto pela poesia. Deixou versos escritos e composições gravadas. Em uma delas, o jovem questiona a transformação das emoções: "As rosas viraram armas e a esperança perdeu a razão, nos olhos da gente reflete a solidão de estar no meio de milhões e não ouvir um coração. O que aconteceu? Onde estou? Para onde vou? O amor se transformou em rancor".
Provas que podem levar à elucidação de crimes
Prova testemunhal (de pessoas ou familiares que presenciaram o crime ou têm contato com os envolvidos).
Prova testemunhal da vítima (quando sobrevive, no caso de homicídio tentado).
Prova pericial (exame de corpo de delito, necropsia, fotografia da cena do crime, impressão digital, DNA, resquícios de pólvora, confronto balístico, análise de vídeo, celular, computador e outros).
Quebra de sigilo telefônico (relação de ligações recebidas e efetuadas)
Interceptação telefônica (escuta de ligações).
Prova documental ou quebra de sigilo bancário (útil em outros tipos de crime como o estelionato).
Condenação chegou, mas a dor não passou
Luciano da Rosa, 34 anos, morava na Avenida Economista Nilo Wulff, no bairro Restinga, na zona Sul de Porto Alegre. Trabalhava no setor de expedição de uma gráfica, mesma empresa onde o pai, Gilberto Dias da Rosa, 66 anos, trabalha até hoje. Era 9 de fevereiro de 2013, sábado de Carnaval, quando Luciano chegou na casa do pai para almoçar.
Gilberto queria que ele ficasse mais tempo, mas Luciano estava empolgado para o churrasco em família que faria no domingo. Queria montar a piscina de plástico para as sobrinhas brincarem.
– Ele me ligou depois que saiu do serviço e disse: 'Pai, bota uma cervejinha para gelar que nós (Luciano e a irmã) vamos pegar um galeto e passar aí'. Naquele sábado, ele almoçou comigo para se despedir – acredita Gilberto.
Por volta das 21h, Luciano já havia preparado a piscina e estava estendendo roupas no varal no mesmo instante em que dois homens se digladiavam com troca de tiros na frente da casa dele. Um dos disparos sobrou para Luciano e o atingiu na testa.
– Ele não deve nem ter visto o que aconteceu: o chinelo nem saiu do pé. O Luciano nunca havia entrado numa delegacia nem para registrar perda de documento e aconteceu isso – lamenta o amigo Alexandre Santos.
A troca de tiros aconteceu em função do tráfico de drogas. Um dos homens foi baleado e preso depois que se recuperou. O segundo envolvido, responsável pelo tiro que acertou Luciano, foi preso na semana seguinte em novo confronto. A polícia confirmou a autoria por meio de exame balístico. Dois anos depois, o autor foi condenado a 27 anos de prisão pelo Tribunal do Júri.
– De certo modo, a justiça foi feita, mas quanto tempo ele vai ficar preso, não se sabe, com esse prende e solta – diz o pai.
Luciano foi o segundo filho que Gilberto e a mulher, Neuci Trindade da Rosa, 62, perderam. O mais velho, de 37 anos, morreu em um acidente de trânsito há oito anos.
– Agora é que estou conseguindo recuperar a minha mulher. Ela ficou com depressão, teve três ameaças de AVC e perdeu a visão por um período. Só quem perde um filho é que sabe. E eu perdi dois – lamenta Gilberto com olhar distante e marejado de lágrimas.
Aposta nas delegacias de homicídios
O ano em que houve mais arquivamentos de processos de homicídio foi 2012, com 56% dos casos. Nos outros anos, a média se manteve entre 50% e 54%. A exceção foi 2015, que chegou à menor marca de arquivamento dos cinco anos (44%) e registrou aumento significativo de condenações se comparado com 2014 (41,1%).
Embora a redução de arquivamentos tenha sido sutil (2,9%) no último ano da estatística, a expectativa da polícia é melhorar esses índices com a reformulação das Delegacias de Homicídio em Porto Alegre e nos municípios onde há maior índice de criminalidade. Apesar da histórica defasagem no efetivo, as unidades especializadas que foram criadas a partir de 2013 têm trazido mais resolutividade, defendem os policiais. Dois mutirões foram organizados neste ano para acelerar investigações antigas.
– Acredito que, nos próximos anos, vamos perceber o reflexo da reformulação das delegacias. A tendência é aumentar o número de condenações – prevê o diretor de investigações do Departamento de Homicídios de Porto Alegre, delegado Gabriel Bicca.
A promotora de Justiça Lúcia Helena Callegari, da 1ª Vara do Júri da Capital, já percebe avanços com as delegacias especializadas:
– Até então, a impunidade era enorme, não havia gente para investigar. Mas acho que estamos mudando essa ideia. O Departamento de Homicídios passou a ser meta da Secretaria de Segurança Pública. O reflexo disso a gente vai sentir daqui a pouco.
As absolvições tiveram acréscimo de 14,4% em 2015 comparadas com o 2014. A absolvição no júri normalmente ocorre quando as provas são frágeis e não convencem os jurados.
O próprio MP pode manifestar falta de convicção sobre autoria. Em casos de legítima defesa, o réu também é inocentado.
Investimento em perícia é alternativa
A promotora de Justiça Lúcia Helena Callegari sugere investir em perícia. Com as comunidades inflamadas pela guerra entre facções, encontrar quem presenciou os crimes e fale sobre os casos é cada vez mais raro.
– Eles (criminosos) trocam de arma como trocam de roupa. A prova principal ainda é a testemunhal, o que é um dificultador de autoria, principalmente quando se fala em crime organizado. As câmeras de monitoramento até ajudam, mas depende do local.
O diretor-geral do Instituto-Geral de Perícias, Cleber Muller, garante que os esforços estão voltados para crimes contra a vida, principalmente nos casos de repercussão. Quatro peritos criminalistas e seis papiloscopistas (que atuam na identificação de impressões digitais) da Força Nacional chegaram para reforçar a equipe na última quarta-feira.
Quem atua no Judiciário acredita que a solução está no combate à criminalidade. O juiz-corregedor Alexandre de Souza Costa Pacheco defende investimento no sistema carcerário. O controle exercido pelas facções dentro dos presídios ultrapassa muralhas e fomenta o crime nas ruas.
– Os presos recolhidos cometem mais crimes, (o sistema) é altamente degradante e retroalimenta a violência. Tem de buscar outras opções – sugere Pacheco.
O juiz Felipe Keunecke, que atua há 10 anos na 2ª Vara do Júri da Capital, visualiza solução a longo prazo. Ele defende acabar com o porte de arma, já que boa parte das armas legalizadas acaba na mão de criminosos, e elevar a pena à condição de perpétua nos casos em que a conduta homicida do réu é reiterada.
– São medidas de todas as áreas, não só criminal. Cerca de 80% das pessoas que se envolvem com delitos graves não tem a figura paterna, por exemplo. É preciso investir em políticas sociais, mas qualquer ação que o Estado tome hoje, terá reflexo em 2020 – avalia.