Os restos mortais de Santa Flora foram reverenciados durante séculos na Europa e suportaram até mesmo a fúria anticatólica da Revolução Francesa, mas não resistiram à criminalidade da capital gaúcha. Na madrugada desta quarta-feira, um relicário contendo o fragmento de um osso da santa foi roubado de uma igreja do bairro Cavalhada, provocando consternação na comunidade religiosa da zona sul da cidade.
O pedaço do fêmur foi obtido há 46 anos pelo padre Alfredo Hoff. Ele viajou ao sul da França, onde a santa viveu, e, em nome da Paróquia Santa Flora de Porto Alegre, conseguiu a doação da relíquia de cerca de três centímetros. Na Capital, um relicário de metal e vidro foi confeccionado para preservar o osso. Ele era conservado em um armário, dentro da sacristia. Nos dias especiais, ficava em exposição no altar.
Pelas 8h deste domingo, Leonilda Bertuol, 65 anos, foi à igreja para apanhar hóstias, que levaria a doentes, quando soube que a sacristia havia sido invadida. Além do relicário, os criminosos levaram um ostensório de bronze com detalhes em ouro, um cálice revestido pelos mesmos metais e dois cibórios (recipientes onde se colocam as hóstias).
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– Foi um choque muito grande. Chorei demais. Sou muito católica, muito envolvida com a igreja, e esses objetos religiosos são tudo para mim – lamentou Leonilda.
O conjunto de objetos usados na celebração da missa vale cerca de R$ 9 mil, na avaliação do pároco, o padre Alexandre Luiz Griebler, mas o que realmente abalou a comunidade foi o roubo do osso.
– As outras coisas dá para comprar, mas a relíquia é uma perda imensurável, porque tem um significado espiritual, religioso e de fé para a comunidade. É o nosso símbolo. É quase como a presença real da santa – explica.
Uma dezena de roubos nos últimos três anos
Griebler acredita que os criminosos entraram na igreja pela torre do sino. A tarefa teria sido facilitada pela presença de andaimes, colocados na lateral do templo em razão de uma reforma em andamento no telhado. Depois de subir, eles quebraram uma lateral de tijolo vazado da torre e conseguiram acesso a nave. Atravessaram a igreja de uma ponta à outra para chegar à sacristia, onde realizaram os furtos. De acordo com Griebler, já são uma dezena os roubos sofridos desde que ele se tornou pároco, há três anos.
Na madrugada de segunda-feira, a paróquia já havia sido alvo de um arrombamento. Na ocasião, os criminosos conseguiram acessar o salão de eventos, mas não levaram nada. Vinte dias antes, assaltantes roubaram o carro da paróquia no momento em que um padre saía da missa. Em outro ataque recente, levaram um notebook, caixas de som e um data show.
– Estamos vendo a possibilidade de colocar um alarme, mas o problema é que investimos tudo que tínhamos na reforma do telhado – observou o paroquiano Gilson Carlesso, 46 anos, do conselho econômico.
O terreno onde se localiza a igreja foi fruto de uma doação, ocorrida em 1925. Como a matriarca da família proprietária chamava-se Flora, os doadores pediram que o espaço fosse dedicado à santa de mesmo nome. Em 1929, foi inaugurada no local uma capela em homenagem à religiosa. A paróquia foi criada em 1954. Dez anos depois, quando Hoff era o pároco, começou a construção da atual igreja. Ela só seria inaugurada em 1973, mas nesse meio tempo o padre conseguiu trazer a relíquia da Europa.
– Imagina o que custou ir à França e conseguir isso. Sobrou pouca coisa da santa, só uns pedacinhos, mas ele foi lá e conseguiu – admira-se Maximino Bertuol, 64 anos, marido de Leonilda.
Na tarde desta quarta, o padre Griebler ainda se preparava para ir a uma delegacia de polícia registrar a ocorrência do roubo, mas passou o dia fazendo apelos para que os criminosos devolvam a relíquia:
– O Senhor Jesus nos ensinou que a misericórdia e o perdão não têm limites. Rezamos pelas conversão para que essas pessoas mudem de vida. O perdão existe, sim, mas desde que a pessoa queira a mudança – aconselha o padre.
Santa pouco conhecida
Conforme material da paróquia porto-alegrense, Santa Flora nasceu em 1309, em Maurs, no sul da França. Na adolescência, entrou para um convento e passou a atuar em um hospital ligado à ordem religiosa.
– Ela é uma santa pouco conhecida, com um trabalho voltado aos pobres, aos doentes, à distribuição de alimentos – afirma o padre Alexandre Luiz Griebler.
Conforme a tradição, Flora protagonizou durante sua vida uma série de milagre e prodígios. Também teve estigmas pelo corpo. Morreu em 1347. Poucos anos depois, um bispo teria ordenado a exumação do corpo. Conforme a lenda, um perfume espalhou-se quando a tumba foi aberta.
Durante a Revolução Francesa, no entanto, o hospital onde a santa trabalhou teria sido incendiado pelos revoltosos, como parte da onda de ataques a instituições católicas perpetrados no período. Alguns ossos da santa resistiram às chamas. É desses restos que teria vindo a relíquia guardada durante quatro décadas na Paróquia Santa Flora.