De terça a domingo, entre 15h e 22h, um apenado de 21 anos deixa o Patronato Lima Drummond na zona sul de Porto Alegre e cruza a cidade em dois ônibus para trabalhar no outro extremo da Capital. Condenado pela primeira vez a cinco anos e quatro meses por roubo de um HB20, em agosto de 2014, quando tinha 18 anos, o rapaz recebeu o benefício do trabalho externo como forma de recuperá-lo para o convívio em sociedade, com aval da Justiça.
Detalhe é que o serviço é na lanchonete da mãe, no bairro Rubem Berta, na Zona Norte. E mais: nem sempre ele está no balcão. Durante quatro dias, a reportagem da RBS TV acompanhou os passos do apenado.
Na tarde de 28 de junho, desembarcou no Rubem Berta, serpenteou por blocos de apartamentos e sumiu. Não passou nem perto da lanchonete, que ficou fechada por mais duas horas. No meio da tarde seguinte, o estabelecimento também não abriu.
Leia mais:
O fracasso do semiaberto ao decorrer dos anos
Por falta de vagas, estado tem sido obrigado a indenizar presos
Apenado assaltou banco dentro da Secretaria da Segurança Pública
Na noite de 30 de junho, tudo parecia normal. A lanchonete atendia clientes, mas nem sinal do rapaz. A reportagem telefonou para o local e perguntou por ele. Avisado por uma atendente, o detento apareceu em menos de 15 minutos. Em 5 de julho, nova visita ao bar. Desta vez, com câmera escondida, constatou a ausência do apenado na lanchonete. Foram quase duas horas de espera em vão.
Com direito de sair para trabalhar desde novembro, é difícil saber desde quando ele se afasta do serviço e o que faz longe da lanchonete. Conforme a Justiça, caberia à Superintendência dos Serviços Penitenciários (Susepe) fiscalizar atividades externas de apenados, mas, ao que parece, isso não acontece. Até então, o detento nunca havia sido punido por driblar a regra.
Esse caso é apenas um entre incontáveis exemplos do fracasso do semiaberto. Fonte inesgotável de insegurança pública, é responsável por lançar às ruas criminosos de alta periculosidade, como autores de latrocínio, roubos à mão armada e assassinatos.
O descontrole nos albergues facilitou, nos últimos 16 anos, 67,1 mil fugas, segundo dados da Polícia Civil. Das prisões realizadas pela Delegacia de Capturas, 27% são apenados do semiaberto, sendo que um terço deles é flagrado cometendo novo crime. Em 2014, após fugir duas vezes do semiaberto, um assaltante matou um soldado da Brigada Militar ao tentar roubar um supermercado, na zona norte da Capital.
A ousadia é tamanha que outro ladrão, com seis fugas no currículo, assaltou o posto do Banrisul na Secretaria da Segurança Pública, em 2015.
Atualmente nem é preciso fugir para ficar nas ruas. A escassez de espaços nas cadeias transformou apenados do semiaberto em "presos" domiciliares. Cerca de 3,7 mil estão em casa e, sem fiscalização, seguem cometendo crimes. Um deles ordenou o roubo de um carro.
A vítima, um professor de música, sem perceber a aproximação do ladrão, fez um movimento brusco e foi executada com um tiro na cabeça. Outro bandido, livre por falta de vagas nos albergues, estuprou três mulheres em Gravataí.
Há três anos, o governo do Estado adotou o monitoramento eletrônico a distância como alternativa aos albergues. Desistiu de construir cadeias para o semiaberto, priorizando as tornozeleiras. Mas o investimento, até agora, tem sido incapaz de estancar os problemas.
O sistema, além de fomentar polêmicas jurídicas, é inconfiável. Os apenados aprenderam a ludibriar o sinal da tornozeleira e fugir do radar da Susepe por algum tempo. Também é comum o rompimento do equipamento, e o preso ficar à solta, apenas com o nome na lista de foragidos.
É recapturado, em geral, cometendo outro crime, como ocorreu em Caxias do Sul, em 2013, com um dos criminosos que invadiram uma casa e mataram um universitário para roubar dois celulares e uma jaqueta.
Além de vidas, o descalabro do semiaberto gera prejuízos milionários. Desde 2012, o Estado está condenado a pagar multa por não abrir vagas nas cadeias, somando R$ 27 milhões, tem sido responsabilizado financeiramente por crimes cometidos por presos do semiaberto e até obrigado a indenizar criminosos que ficaram atrás das grades esperando vagas em albergues.
O fracasso do cumprimento progressivo de condenações em paralelo à escalada da violência fomenta clamor social incomum por mudanças na legislação, em especial, pelo fim do semiaberto e o endurecimento de penas. Atualmente, a crise prisional no Rio Grande do Sul permite que 5,3 mil condenados estejam nas ruas, podendo aumentar para 9,4 mil com aval do Supremo Tribunal Federal, que recentemente autorizou mandar para casa presos do semiaberto se faltar espaço em albergues.
Reportagem conjunta de Diário Gaúcho, Rádio Gaúcha, RBS TV e Zero Hora apresentará a derrocada do regime que, para muitos agentes da segurança pública, é chamado ironicamente de "sempre aberto". Clique nos botões abaixo para acessar todas as histórias:
CONTRAPONTOS
O que diz a Vara de Execuções Criminais da Capital
No caso específico, restou comprovado, pela documentação, que o local teria sido colocado pela família para os filhos trabalharem. E, de uma maneira geral, poucos empregadores se comprometem em avisar se o preso comete alguma falta. É inadmissível que o preso não tenha sido localizado no trabalho. O Judiciário não tem como controlar, e não faz parte de suas obrigações. A responsabilidade é da Susepe. Sempre que houver uma informação neste sentido (não estar trabalhando) haverá apuração. Neste caso, não há qualquer informação.
O que diz a Susepe
Cada autorização (para trabalho externo) tem as suas especificações, seria necessário ver os termos da autorização judicial. A fiscalização não é atribuição exclusiva da Susepe. Na Região Metropolitana, por exemplo, no município de Novo Hamburgo a fiscalização é compartilhada entre a Brigada Militar, Susepe, Guarda Municipal e Polícia Civil. Tal objetivo é de integrar todos os órgãos de segurança na inspeção dos locais de trabalho dos apenados.