O final de 2012 e o início de 2013 pode ser considerado um divisor de águas com o naufrágio definitivo do semiaberto no Estado. O primeiro nocaute foi duplo. Abdicou de erguer albergues, cedeu terreno da Colônia Penal em Charqueadas para sem-terras e resolveu os problemas em Venâncio Aires e Viamão fechando as portas das duas unidades – incluindo um anexo na colônia penal na cidade do Vale do Rio Pardo erguido três anos antes ao custo de R$ 843,6 mil.Reformas também foram adiadas. No Pio Buck, dois prédios estão sem uso há sete anos – um segue em ruínas até hoje, e outro foi restaurado com verba do judiciário, para 120 vagas, mas segue fechado.
Curiosamente, o Estado promoveu naquele ano um seminário no qual foi apresentado como "caso de sucesso" a promessa de vagas nas cadeias gaúchas, grande parte até hoje não cumprida.
O golpe fatal contra o semiaberto foi a decisão de controlar presos à distância, em casa. A Secretaria da Segurança Pública (SSP) apostou todas as fichas no monitoramento eletrônico por meio de tornozeleiras. A meta era vigiar 5 mil detentos, o que jamais aconteceu por razões financeiras e por causa de polêmicas jurídicas.
O Ministério Público sempre foi contra o uso de tornozeleira para cumprimento de pena, mesmo entendimento da maioria nas câmaras criminais do Tribunal de Justiça do Estado (TJ). Mas o Superior Tribunal de Justiça (STJ) é a favor.
Embalagem de leite bloqueia sinal de equipamento
Até dois meses, o TJ mandava tirar o equipamento, e o STJ, recolocar. Essa indefinição durava meses, e nesse meio tempo presos ficavam soltos. Em 11 de maio deste ano, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu a questão. Determinou que tornozeleiras podem ser usadas por presos para cumprir pena em prisão domiciliar se não tiver vagas em albergues. E mais: na falta do equipamento, presos podem ficar em casa sem monitoramento até que seja adquirida a tornozeleira pelos governantes.
Atualmente, 284 presos esperam em casa, sem qualquer vigilância, vaga em albergue ou para usar tornozeleira. O único controle sobre eles depende da vontade dos próprios apenados que é de se apresentarem a cada cinco dias à Susepe. Com a recente decisão do STF, a Susepe vai ter de resolver o problema. Ou cria espaço em albergues ou aumenta a oferta de tornozeleiras. A disponibilidade atual beira 1,3 mil aparelhos.
Afora questões legais, a tornozeleira apresenta aspectos frágeis. Já ocorreu de traficante, sem sair da área permitida, ser flagrado vendendo drogas, e, no entanto, para efeitos de monitoramento à distância, ele estava cumprindo a pena corretamente. Outro aspecto vulnerável é a facilidade de bloquear o sinal do equipamento com papel alumínio ou embalagem de leite tetrapak. Essa burla ao sistema é considerada falta grave, assim como romper a cinta do equipamento ou deixar a bateria descarregar porque a Susepe perde a localização do apenado.
Em geral, o apenado que age assim, tem sido punido com a regressão do regime semiaberto para o fechado. Mas para que isso aconteça, ele tem de ser capturado. Ocorre que, assim como no caso de fuga em albergue, nenhum autoridade da segurança vai atrás do preso que escapa da vigilância eletrônica. É somente incluído o nome dele no banco de dados nacional de fugitivos. A recaptura do apenado costuma ocorreu quando é barrado em uma blitz ou flagrado cometendo um novo crime.
Albergue e tornozeleira: descrédito em dose dupla
Assim como os albergues, as tornozeleiras se mostram insuficientes para recuperar ou controlar apenados do semiaberto.
Um caso em especial, o assassinato de um universitário durante assalto, ocorrido há três anos, em Caxias do Sul, na Serra, é exemplar, ao revelar essas fragilidades em dose dupla.
O crime ocorreu na noite de 16 de julho de 2013. Dois ladrões invadiram uma casa no bairro Floresta. Depois de render o comerciante Ademar Folchini na garagem, um dos bandidos foi para o andar superior da moradia, onde estava apenas um dos filhos de Ademar, o estudante de Engenharia Civil Diego Folchini, 25 anos.
De férias na faculdade, o jovem aproveitava o tempo livre para visitar a família. Sentado em frente ao computador em um dos quartos, de costas para a porta, com fones nos ouvidos, dedilhando mensagem para a namorada no celular, foi assassinado com um tiro na nuca, sem esboçar reação e sem saber o que se passava. A dupla fugiu com ajuda de dois comparsas que esperavam na rua. Levaram apenas dois celulares e uma jaqueta.
O crime revoltou Caxias do Sul. Duas semanas depois, a polícia prendeu quatro suspeitos. Um deles é Gilberto da Rosa Neto. À época com 35 anos, já somava 40 anos de condenações por sete assaltos. Após 16 anos na cadeia e cinco fugas de albergues, havia dois anos estava no semiaberto com direito a saídas autorizadas. Pelo assassinato do estudante, foi condenado a 26 anos de prisão, e teve a pena aumentada para 66 anos, até 2064.
Outro envolvido é Alexandre César Rosa Teixeira, 34 anos. Entre 2002 e 2012, foi presos cinco vezes, condenado a 17 anos e oito meses de cadeia em quatro processos (três por assaltos e um por porte de arma) e fugiu duas vezes do semiaberto. Em março de 2013, recebeu o indulto, com a chance de voltar para casa e começar uma nova vida. Mas preferiu seguir no crime.
Pelo envolvimento no latrocínio de Diego Folchini, foi sentenciado a 27 anos de cadeia. Obteve direito de começar a cumprir a pena em prisão domiciliar por sofrer de uma doença intestinal agravada por inflamações e úlceras.
Mas, três meses depois da condenação, foi preso sob suspeita de receptação, flagrado em desmanche de carros com um Omega furtado. Teixeira passou seis meses no regime fechado, mas em função da doença, ganhou, novamente, direito de voltar para casa, desta vez, monitorado por uma tornozeleira eletrônica – se apresentava em audiências em cadeira de rodas e usando bolsa de colostomia.
Em junho de 2015, acolhendo pedido do Ministério Público, o Tribunal de Justiça do Estado (TJ) entendeu que, por causa do crime de receptação, Teixeira tinha de ser recolhido para atrás das grades. A decisão nem chegou a ser cumprida. Antes de ser capturado e voltar para o regime fechado, Teixeira sumiu com a tornozeleira do radar da Superintendência dos Serviços Penitenciários. Ficou nove meses desaparecido, até ser localizado pela Polícia Civil de Caxias do Sul, em março de 2016.
À procura de um foragido, agentes da Delegacia Especializada em Furtos, Roubos Entorpecentes e Capturas (Defrec) depararam com Teixeira em um carro roubado, com uma pistola calibre nove milímetros e porção de maconha. Acórdão da 7ª Câmara Criminal do TJ narra que Teixeira é homem sem limites e classifica a conduta carcerária dele como "péssima".
– Por que tanta maldade? Por que matar uma pessoa indefesa? Poderiam ter levado tudo da minha casa sem que ele percebesse. O sofrimento da nossa família é muito grande. Minha filha faz tratamento psicológico, meu filho mais jovem ficou muito revoltado – lamenta Dulce Schmidt, 60 anos, mãe de Diego.
Após o crime, Dulce se engajou em uma campanha pelo fim do semiaberto.
– A sociedade tem de mexer. Pode demorar, mas isso vai acabar.