Em vez de construir três albergues como sugerido pelo Judiciário para atenuar a crise nas cadeias e evitar que criminosos fossem mandados para casa por falta de vagas no semiaberto, o Estado optou por dar destino bem diferente a 268 hectares – equivalente à metade das terras – da Colônia Penal Agrícola (CPA), em Charqueadas: cedeu ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).
O descalabro do semiaberto é tema de série de reportagens produzida em conjunto por ZH, Diário Gaúcho, Rádio Gaúcha e RBS TV.
Desde 2004, o governo demonstrava desinteresse em investir na cadeia sob argumento de que os apenados têm perfil urbano e não se adaptam às lidas do campo, um dos modelos para colônias previsto na Lei de Execução Penal.
À época, a CPA era o quartel-general do crime. A Superintendência dos Serviços Penitenciários (Susepe) já não dispunha de material e pessoas para controlar a área de 550 hectares onde apenados pegavam mais em armas do que em enxadas. Fugas e motins não geravam punições, e revista geral era proibida com novas rebeliões.
Em outubro de 2011, integrantes do MST invadiram área da colônia rodeada de açudes onde fica o pomar de laranjeiras. Em março de 2012, outro grupo se instalou junto à área da pecuária. E, dois meses depois, nova invasão, desta vez, na margem oposta da estrada que leva à porteira de entrada do local, perto dos alojamentos dos presos.
A situação motivou reuniões entre as secretarias de Desenvolvimento Agrário e da Segurança Pública do governo de Tarso Genro. Um acordo permitia assentamento de 20 famílias em 350 hectares da colônia. Documento da Susepe, de novembro de 2011, informava que 219 hectares estavam disponíveis, e outros cem poderiam ser ocupados após desmatamento da área e leilão das madeiras – a cedência acabou sendo de 268 hectares.
Na Justiça, MP pede que área sedie novas cadeias
Na época, a CPA já sucumbia ao abandono. O pomar, que uma década antes abastecia de laranjas cadeias e até creches na Capital, minguou de 50 hectares para 15, e rebanho de gado de 400 cabeças para 120. Contrariado com a invasão, o Ministério Público Estadual (MP) abriu expediente sobre o caso. Inspeção de um engenheiro civil apontou que a área da CPA poderia abrigar novas cadeias, fica perto do centro da cidade, servida por redes de energia de baixa e alta tensão, e o solo suporta edificações, possibilitando instalação de empresas para trabalho de presos.
Além disso, a vistoria do MP constatou que a presença do MST prejudicava o serviço prisional no campo. O laranjal apodrecia, contaminado por um fungo, e o gado emagrecia por falta de espaço para pastagem. Além disso, surgiam registros na Polícia Civil narrando movimentação de estranhos pela CPA e corte de eucaliptos para venda em madeireiras locais.
Apesar dos questionamentos do MP, o governo formalizou "termo de destinação de uso por 10 anos" ao MST, publicado no Diário Oficial em novembro de 2012. No mês seguinte, o MP abriu ação judicial contra a medida.
Em junho de 2013, a 4ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça (TJ) entendeu que o ato de cedência era nulo, pois o decreto estadual 19.572, de 1969, determinava que a área era de "uso exclusivo para ressocialização de apenados". A decisão do TJ também ordenava a retirada das famílias em 90 dias. O Estado recorreu, pedindo mais prazo, e o TJ aceitou. O local foi transformado em assentamento e ninguém deixou a área.
Em 2014, foram erguidas casas de alvenaria abastecidas com água de poço artesiano e rede de luz. Convencido pela Procuradoria-Geral do Estado de que a melhor opção era regularizar o assentamento, em 21 de setembro de 2015, o governador José Ivo Sartori assinou o decreto 52.565.
A 2ª Vara da Fazenda Pública chegou a encerrar o caso, mas o MP recorreu. Apenas 14 famílias estariam incluídas no assentamento, mas a cada dia surgem novas.
– Há grande discussão no Estado sobre onde construir casas prisionais. A CPA é uma área destinada ao sistema prisional e tem espaço – afirma o promotor José Eduardo Coelho Corsini, que atua no processo.
CONTRAPONTO
O que diz a SusepeQuestionada sobre a cedência da área, formalizada pelo decreto 52.565, assinado pelo governador José Ivo Sartori, a Susepe respondeu que “esta doação foi realizada pelo governo anterior”.