A titular da Delegacia da Criança e do Adolescente Vítima do Rio de Janeiro, Cristiana Bento, que assumiu a investigação do caso de estupro coletivo de uma adolescente de 16 anos na zona oeste da capital fluminense, disse nesta segunda-feira que a vítima foi violentada duas vezes: pelo estupro e pela sociedade.
– Ela é vítima dos autores daquele ato de violência e da sociedade, que subtraiu dela os valores morais, sociais – disse a delegada em audiência sobre cultura do estupro na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj). – Muitas meninas não sabem sequer que sofrem abusos, como o caso dessa menina. Ela não sabia, não tinha essa noção. Nas comunidades (favelas) isso é normal, ela está ali e tem que se sujeitar a isso. Cresceu vendo isso.
Para coibir os estupros, Cristiana Bento defendeu a ampliação de campanhas de conscientização e da fiscalização em vez de mudanças na lei:
– Nossas leis são boas, precisamos apenas de sua execução e fiscalização.
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Segundo a delegada, as investigações estão avançadas e os três homens que aparecem no vídeo em que a vítima aparece desacordada e nua já foram identificados e presos. Para ela, a apreensão de um celular na sexta-feira passada, na casa de um amigo de um dos suspeitos, foi crucial para a investigação.
– Para quem tinha dúvidas, com esse celular elas se acabam. Vemos nitidamente o estupro de vulnerável ocorrendo.
A quantidade de homens que participaram do crime, 30 de acordo com a apuração inicial, ainda não está confirmada, segundo a delegada.
– Mas a quantidade não importa tanto, mas sim que estamos identificando esses personagens, que houve um abuso e que essa adolescente é vítima – disse.
Cristiana Bento lamentou que esse tipo de crimes seja subnotificado.
– A maioria dos adolescentes abusados, mulheres, não revelam por vergonha, por medo, por não querer reviver aquele trauma. Nos crimes sexuais a palavra da vítima é muito importante. Precisamos empoderá-la – defendeu a delegada.
Perguntada se delegado Alessandro Thiers, da Delegacia de Repressão a Crimes de Informática, que estava à frente das investigações antes dela foi machista no tratamento à vítima e ao cogitar que não houve estupro, Cristiana defendeu o colega.
– Não sei o que aconteceu, ele estava no início das investigações, deveria ter tido algum dado que o levou para esse lado.
Para a delegada, o machismo nas delegacias tem diminuído com cursos e palestras sobre a questão do gênero.
– Acho que estamos trabalhando e construindo esse respeito.
Já a deputada estadual Martha Rocha, que também é delegada, classificou a atuação de Thiers de machista.
– É fato que o atendimento inicial dado a essa vítima teve um viés de preconceito. Espero que se apure uma possível transgressão ou não do delegado Alessandro Thiers – disse, ao comentar que o machismo presente nas delegacias brasileiras é fruto de uma sociedade machista.
Deputados federais acompanham o caso
A comissão externa da Câmara dos Deputados criada para acompanhar a apuração do crime também participou da audiência antes de se reunir com o governador em exercício Francisco Dornelles e com o secretário estadual de Segurança Pública, José Mariano Beltrame. A presidente da comissão, deputada Soraya Santos (PMDB-RJ), disse que, com base nas sugestões das diferentes comissões da Alerj e de projetos de lei sobre o tema, o grupo apresentará na terça-feira um relatório propondo medidas de prevenção e punição para esse tipo de crime e de melhoria no atendimento às vítimas.
Entre as propostas, segundo a deputada, a está de endurecer as penas contra disseminação de imagens íntimas de mulheres sem seu consentimento e a de criar um protocolo de atendimento de mulheres vítimas de violência sexual.
– Precisamos ter somente delegacias femininas especializadas ou precisamos criar esse tipo de atendimento em todas essas delegacias? Será que o melhor atendimento é nos hospitais? Precisamos uniformizar um procedimento padrão para organizar essas questões e termos ambientes melhores para essas mulheres – afirmou. – Queremos que este caso seja referência para tantos outros casos anônimos que não têm as mesmas luzes e repercussão. Em todo o Brasil também recebemos reclamações sobre o atendimento nas delegacias – disse. –Uma das medidas que está sendo estudada é uma forma de punir aqueles que não sabem atender as nossas mulheres nas delegacias – adiantou.
O presidente interino da Câmara, Waldir Maranhão (PP-MA), se comprometeu a colocar o texto em votação já na próxima semana, caso o grupo consiga concluir o projeto a tempo de apresentá-lo ao Colégio de Líderes na tarde de amanhã, quando será discutida a pauta de votações. A comissão foi criada há apenas dois dias.
Audiência pública
A professora de direito da Universidade Federal do Rio de janeiro (UFRJ), Vanessa Berner, foi uma das convidadas da audiência na Alerj e demonstrou preocupação com a forma como os políticos vêm tratando as questões relacionadas à igualdade de direitos entre homens e mulheres.
– Gênero não é ideologia, mas um recorte que atravessa todas as áreas da nossa vida, está entranhado na estrutura social – disse. – Na nossa sociedade as mulheres não são sujeitos, mas objetos de dominação masculina. A inferiorização da mulher e o controle do seu corpo, de sua sexualidade é uma forma de constranger a mulher socialmente. A cultura do estupro é sobretudo um processo bem articulado de constrangimento social – analisou.
Vanessa Berner citou um dado do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) segundo o qual ocorrem no Brasil 527 mil tentativas ou estupros a cada ano, uma a cada 12 minutos, sendo que 70% deles são cometidos por parentes, namorado, padrasto, marido, companheiro ou do próprio pai da vítima.
A deputada federal Jandira Feghali (PT-RJ) disse que o risco de retrocessos na luta contra o machismo e a violência de gênero é grande diante da atual composição da Câmara dos Deputados.
– Não conseguimos mais manter a palavra gênero em nenhum projeto, em nenhum plano estratégico, na educação, na saúde, em lugar nenhum – disse a deputada, ao citar como exemplo de retrocesso o Projeto de Lei 5069, do deputado afastado Eduardo Cunha, que criminaliza o "induzimento, instigação ou auxílio ao aborto".
– Inclusive, nos casos de gravidez por estupro, as mulheres e os profissionais de saúde são criminalizados e a contracepção de emergência é suspensa – citou.
Jandira defendeu a proibição de progressão penal nos casos de crime hediondo, a introdução da questão de gênero nos currículos das escolas e a reflexão sobre a imagem da mulher, dos travestis e transexuais na comunicação brasileira que, segundo ela, incentiva a cultura do estupro.
Participantes da audiência também denunciaram o abandono de centros de referência para as mulheres vítimas de violência sexual, de assistência social e de outros equipamentos da rede de apoio dessas mulheres, crianças e adolescentes, como o atraso nos salários de funcionários e falta de insumos básicos nesses locais, entre outros problemas.