O que está preso é o corpo, não a mente. As palavras que abrem este texto formariam nada mais do que uma frase de efeito, não fosse a dedicação de uma jovem de 30 anos, advogada, jornalista, mestre em Direito e voluntária no Presídio Central de Porto Alegre.
Movida pela convicção de que não existe direito se não houver prática, há dois anos Carmela Grüne visita semanalmente o presídio considerado o pior da América Latina para desenvolver um projeto que garanta aos detentos liberdade, pelo menos, para se expressar.
- Por que as pessoas que estão presas precisam ser infelizes? Por que as memórias desse tempo no cárcere precisam ser apagadas? - questiona.
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Criada em 2011, com apoio do Ministério Público do Estado (MP) e da Superintendência dos Serviços Penitenciários (Susepe), para atender presidiários em tratamento de dependência química, a galeria batizada com o sugestivo nome de "Luz no cárcere" era o espaço que Carmela buscava desde 2010 para poder agir no Presídio Central. Como era preciso reorganizar a forma como os presos usavam o tempo, Carmela, que já visitava semanalmente a área administrativa do Central, achou uma brecha para colocar cultura e cidadania na agenda dos detentos.
Os encontros são sempre registrados em fotos e vídeos, captados e editados por Carmela, com ajuda do realizador audiovisual João Antônio Teixeira Junior, 24 anos, também voluntário. O material é postado em uma página no Facebook que leva o nome do projeto: Direito no Cárcere. Tudo o que é produzido para ser publicado na rede é discutido, pensado e até ensaiado.
- Uma coisa é dar a máquina, outra coisa é trabalhar o interior deles e saber o que eles vão transmitir com aquela máquina. Aí eles começam a ver como eles são capazes de dizer o que pensam com legitimidade - frisa Carmela.
Apesar do apoio da sociedade civil, que garante 30 mil visualizações mensais à pagina do projeto, presidiários mostrando o rosto na internet desafiam os padrões do sistema prisional, tanto que a direção tentou proibir, mas os apenados escreveram uma arta reivindicando o direito de ter direito sobre o uso da própria imagem.
A consciência sobre os próprios direitos é tema frequente de discussão nas visitas de Carmela, que montou uma biblioteca com livros jurídicos para que os apenados possam se aprofundar no assunto. Outras intervenções da jovem no ambiente são bem mais sutis. Um espelho foi colocado na sala de convivências da galeria E-1 - onde estão 61 presos - para que eles possam se ver. Fotos da turma estão fixadas em um painel para gerar mapas de memória. As grades da sala foram cobertas com cortinas brancas. O verde-escuro até a metade das paredes deu lugar ao branco, com a participação dos presos na pintura. Um mutirão levou grafiteiros à galeria para colorir o muro do pátio com arte. Uma vez por mês, uma banda faz show na E-1.
Talvez o resultado mais simbólico dessa ressignificação do espaço prisional seja percebido na convivência entre os detentos. Muitos ali eram pequenos traficantes, vendiam droga para sustentar o vício. Alguns mataram, outros roubaram, há quem tenha matado e roubado por causa da droga. Vieram de um período obscuro em que "eliminar" o outro era questão de sobrevivência. Hoje, enaltecem a solidariedade. Fazem questão de mostrar como cada um ajuda o outro com os conhecimentos que tem, seja uma receita de bolo ou assessoramento jurídico. É isso que os faz agora melhores do que antes. É isso que lhes dá esperança de amanhã voltar para a rua melhor do que saíram, contrariando o senso comum.
Liberdade para pensar no futuro
O projeto Direito no Cárcere ganha sentido quando os detentos começam a contar a sua história. O natural seria falar dos erros que cometeram para estar cumprindo pena encarcerados, mas não. Eles falam sobre seus projetos de vida para quando saírem da cadeia. A memória da escuridão só assombra a conversa como alavanca para reafirmar o compromisso de jamais voltar para aquela realidade. Ainda é difícil dimensionar o que acontece quando eles saem do presídio. Até então, a equipe já considera um alento a mudança de perspectiva. Conheça algumas dessas histórias.
Felipe quer fazer faculdade de Direito
A oratória de Felipe Loureiro Martins, 32 anos, impressiona. Não condiz com quem está concluindo o Ensino Médio dentro do Presídio Central. Ele aponta para a prateleira com dezenas de livros jurídicos para justificar de onde vem o conhecimento que lhe rendeu o apelido de "professor".
- Os guris brincam porque estou sempre lendo ou escrevendo. Já li todos os livros da galeria, fora os da biblioteca central - orgulha-se o rapaz, que em seguida entrega à reportagem um manuscrito do livro que ele mesmo está escrevendo.
Com material trazido pela mãe, já que nem papel e caneta o presídio oferece, Felipe reinterpreta o Código Penal sob a ótica do detento.
- O meu livro relata como o preso vê a justiça para si. Uma coisa é o direito na rua, outra é quando ele está segregado da sociedade. Quero preencher essa lacuna entre o preso e a sociedade, porque tem muitas pessoas que erraram, mas estão tentando se ressocializar - defende.
O conhecimento jurídico de Felipe não fica só no papel. Ele usa para fazer petições ao juiz e reduzir sua pena - e também a de colegas que ele assessora. Já conseguiu adiantar a progressão para o semiaberto de setembro para maio de 2014. Quando sair, quer tentar uma vaga na faculdade de Direito.
- Hoje eu recuperei minha dignidade. Quero levar adiante o que eu aprendi com meus erros, o que estou aprendendo com as pessoas que estão me ajudando a ter uma nova filosofia de vida - projeta.
Michel encontrou na arte uma terapia
Na parte de baixo do beliche onde dorme Michel Chaves Ferreira, 31 anos, roupas dobradas e guardadas dentro de sacos plásticos dividem espaço com cremes e perfumes na prateleira.
De tão organizado, Michel ganhou a confiança dos colegas para ser o cantineiro da galeria E-1. Todos os dias, ele passa com o caderninho de porta em porta anotando as encomendas e recolhendo o dinheiro da rapaziada. Mas é na tatuagem e no artesanato que a mente de Michel vai mais longe.
- É uma ótima terapia, quando eu faço artesanato, minhas tatuagens, eu desligo desse espaço, esqueço que estou aqui dentro - diz ele, mostrando o que ainda falta para terminar o abajur giratório feito com palitos de sorvete e de churrasco.
Houve um tempo em que outro detento fazia a peça para se manter no presídio. Michel ficou olhando para aprender. O primeiro ele deu de presente para o filho mais novo, de um ano e meio, depois começou a vender.
- Já tenho planos pra isso aqui na rua, pretendo continuar fazendo esse trabalho - planeja.
Para fazer tatuagem, Michel tem uma autorização especial que permite que ele receba agulhas descartáveis, trazidas lacradas pela mãe em dia de visita. Para ganhar uma nova, ele precisa devolver outra usada. As tintas são profissionais. Já a máquina foi construída por ele mesmo, com uma ponta de caneta Bic, uma fonte de recarga de celular e outras bugigangas que ele juntou na galeria. Tem estúdio de tatuagem que já está de olho no talento do rapaz.
Clederson aprendeu o que é solidariedade
Auxiliar de enfermaria na galeria E-1, Clederson Corrêa da Silveira, 30 anos, precisou ser preso pela segunda vez para entender o sentido da palavra solidariedade.
Ele ajuda cadeirantes, como Jeferson Oliveira dos Santos, 34 anos, a se deslocar no presídio, além de realizar tarefas do dia a dia, como trocar de roupa e cuidar da higiene. Clederson ajuda os colegas também com o conhecimento jurídico que já vinha buscando antes e agora vem ampliando no projeto. O último a quem ajudou a reduzir a pena saiu do Central para usar tornozeleira eletrônica no dia da entrevista.
- Eu sou um cara bom, isso vem de família - diz ele.
Recuperar a confiança da família é o maior desafio que Clederson vê pela frente. Paisagista, ele trabalhava com o irmão antes de se perder no vício. Já tinha tentado a recuperação, mas não resistiu e acabou caindo de novo. Com lágrimas nos olhos, fala sobre a maior conquista que teve desde que "encontrou a luz no cárcere", como ele mesmo diz:
- Graças ao projeto, recebi a visita da pessoa que eu mais amo no mundo, minha mãe.
Bento quer manter os filhos por perto
Com três filhos e dois netos, Carlos Alberto Machado Rodrigues, o Bento, 38 anos, olha para a rua pela janela do presídio como quem já se imagina pisando lá fora outra vez. Faltando sete meses para progredir ao semiaberto, Bento só pensa em ficar perto da família.
- Aqui é um lugar onde se pode mostrar para a sociedade que o preso tem recuperação - considera.
Pintor profissional, Bento mostrou habilidade com o rolo de tinta quando Carmela organizou o mutirão de pintura da galeria. Nos dias de visita, ele monta uma banquinha para vender bolo e ganhar um trocado. Quem ensinou a receita foi Felipe, o aspirante a calouro de Direito, que é confeiteiro de ofício.
- Aqui a gente tenta ajudar um ao outro - resume Bento.
O forno é improvisado com uma panela e um pano de prato para cobrir a forma sobre o fogareiro elétrico. Improviso é o que não falta na galeria, apesar de não ter superlotação como nas demais áreas do Central. Uma escova de dentes enfiada em um buraco na parede serve de gancho para pendurar a sacola de pão - se deixar no chão, as baratas atacam, dizem eles. Fios de ventilador e outros equipamentos estragados são reaproveitados, encapados com sacolas, para fazer instalações elétricas nas celas. Até para driblar dificuldades estruturais da cadeia, os detentos demonstram criatividade e força de vontade.
Dependência química nas cadeias
- A Susepe dispõe de 18 vagas no Hospital Vila Nova para o tratamento de desintoxicação, onde o dependente fica 21 dias internado.
- As vagas são distribuídas entre apenados do Presídio Central, da Penitenciária Feminina de Guaíba, da Penitenciária Modulada de Osório e da Penitenciária Modulada de Charqueadas.
- O Central é o único presídio que tem uma galeria totalmente livre de drogas para receber os apenados após a desintoxicação, mas há acompanhamento médico e de assistente social para dar continuidade ao tratamento em todas as cadeias.
- O tratamento não é compulsório, depende do interesse do dependente em abandonar o vício.
- A Susepe não dispõe de estatísticas quanto ao índice de dependência química nas cadeias.
Fonte: diretora do Departamento de Tratamento Penal da Susepe, Sandra Fonseca.