Imagine que um carro com problema está andando muito rápido. Ao invés de tentar pará-lo, você o abastece com combustível de foguete. Junto a isso, desliga a refrigeração. O veículo superaquece e não consegue se autoconsertar, portanto, para de se mover. É com essa analogia que o biomédico brasileiro Matheus Henrique Dias explica o método no qual se baseia sua pesquisa sobre um novo tratamento de câncer colorretal — o terceiro mais comum entre homens e mulheres no Brasil.
Publicado na edição de julho da revista médica Cancer Discovery, o trabalho liderado por Dias traz uma abordagem contrária à terapia convencional de câncer. Em vez de inibir os sinais desregulados que fazem as células cancerígenas se multiplicarem de maneira anormal, o tratamento estudado os estimula ainda mais, gerando um tipo de sobrecarga e estresse, que acaba matando as células.
Doutor pela Universidade de São Paulo (USP), o pesquisador começou a estudar essa abordagem há cerca de 15 anos, quando ainda atuava na capital paulista. Depois, continuou a pesquisa no Instituto Butantan, onde fez pós-doutorado. O trabalho atual, com foco em câncer colorretal, teve início há cinco anos, quando passou a atuar no Instituto Holandês do Câncer, em Amsterdã.
Apesar de inicial, a pesquisa é avaliada como “revolucionária” e “inovadora” por especialistas de diferentes instituições brasileiras. Os testes em humanos devem iniciar em 2025, na Holanda — o processo até chegar aos resultados, contudo, pode levar alguns anos.
Para compreender a descoberta do pesquisador brasileiro, é preciso lembrar que as células do organismo humano se multiplicam constantemente. Nesse processo, algumas podem sofrer mutações, tornando-se cancerígenas. As células cancerígenas têm um “defeito de sinalização” que faz com que se dividam de maneira descontrolada, formando os tumores.
O biomédico esclarece que, atualmente, há dois tipos principais de tratamento contra o câncer. Um deles tenta bloquear os sinais para impedir que ocorra a multiplicação, enquanto o outro tem como objetivo matar todas as células que se dividem rapidamente — é o caso da quimioterapia e da radioterapia, por exemplo. O problema é que essas drogas também acabam matando as células normais ou impedindo-as de se multiplicarem, fazendo com que ocorram os efeitos colaterais.
— Na pesquisa, o que estamos propondo é aumentar de maneira muito forte a sinalização que as células usam para se dividir, mas isso não significa que elas vão se dividir mais, porque quando aumenta a sinalização, gera sobrecarga e estresse nessas células. Então, elas tentam se multiplicar, mas não conseguem. Ficam com a sinalização tão forte que isso estressa elas de uma maneira que não conseguem mais se dividir — afirma Dias.
O tratamento é feito a partir da combinação de duas drogas diferentes, sendo que a primeira é utilizada no processo descrito pelo pesquisador. Depois, é a vez do segundo medicamento, que impede que as células cancerígenas corrijam o defeito, mantendo-as estressadas ao extremo. Com isso, a droga acaba matando as células já afetadas.
— A ideia também é matar as células de câncer, a diferença (desse tratamento para os atuais) é que tentamos fazer isso de uma maneira diferente. Usamos o próprio defeito para matá-las, porque quando aumentamos a sinalização, as células de câncer são as mais afetadas, porque já tinham esse defeito — resume, destacando que a combinação de drogas funcionou no laboratório e em animais.
De acordo com Dias, a expectativa é que os testes em pacientes com câncer colorretal comecem em até seis meses. Os primeiros exames serão feitos em poucas pessoas e terão como objetivo investigar se as drogas são seguras quando administradas em combinação. Deve levar em torno de três a cinco anos para saber se os medicamentos funcionam, mas o prazo para que estejam de fato no mercado e sejam implementados como prática médica comum é “completamente imprevisível”, aponta.
Câncer colorretal
O pesquisador comenta que o raciocínio por trás da abordagem potencialmente pode ser usado para o tratamento de qualquer tipo de câncer. Entretanto, as drogas são específicas e devem variar entre as diferentes neoplasias, demandando estudos em distintos modelos.
— Escolhemos testar inicialmente em câncer colorretal porque é um tipo de tumor muito prevalente e com um prognóstico ruim quando em estágio avançado — justifica Dias.
Estimativas do Instituto Nacional de Câncer (Inca) para o triênio 2023/2025 mostram que esse tumor é o terceiro mais incidente na população brasileira: são esperados 45.630 novos casos em cada um desses três anos. Essa neoplasia fica atrás apenas do câncer de mama feminino e do câncer de próstata — que aparecem em primeiro e segundo lugar no ranking, respectivamente.
Somente em 2022, foram 22.330 mortes decorrentes de câncer colorretal no Brasil, conforme o dado mais recente do Atlas da Mortalidade.
Carolina Ribeiro Victor, oncologista clínica do Instituto do Câncer do Estado de São Paulo (Icesp) e membro da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica (Sboc), ressalta que, cada vez mais, os especialistas estão vendo esse tipo de câncer acometer pessoas mais jovens, com menos de 50 anos — um exemplo é a cantora Preta Gil, que recebeu o diagnóstico aos 48.
O médico e pesquisador do Serviço de Oncologia do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA) Rodrigo Perez Pereira acrescenta que a incidência do câncer colorretal no Rio Grande do Sul é grande e que uma “tendência preocupante” de aumento entre pessoas mais novas vem sendo demonstrada especialmente nos últimos anos. Antes, a maioria dos casos ocorria entre a quinta e a sexta década de vida. Agora, os especialistas têm atendido pacientes na casa dos 30 e 40 anos.
Por esse motivo, diferentes países têm reduzido a idade indicada para iniciar os exames de rastreamento, utilizados para identificar lesões em estágios mais iniciais, como a colonoscopia e a pesquisa de sangue oculto nas fezes.
— Hoje, o Ministério da Saúde recomenda iniciar os exames com 50 anos aqui no Brasil. Já nos Estados Unidos, como estão vendo cada vez mais essa incidência na população mais jovem, os especialistas estão recomendando realizar o rastreamento com 45. Então, estamos discutindo cada vez mais sobre rastreamento, que é feito quando a pessoa não está sentindo nada, como a mamografia e o antígeno prostático específico (PSA) — explica Carolina.
Causas, sintomas e tratamento
De acordo com os especialistas, as causas do câncer colorretal estão relacionadas a fatores como sedentarismo, obesidade, consumo excessivo de carne vermelha, tabagismo, consumo de álcool, aumento de gordura abdominal, consumo excessivo de alimentos industrializados e embutidos, bem como histórico familiar. Portanto, se trata de um tumor que pode ser prevenido, enfatiza Alexandre de Mendonca Palladino, oncologista clínico do Inca:
— Então, a pessoa pode diminuir o risco, porque existem fatores externos que contribuem e podemos intervir. Também há fatores genéticos, mas são casos menos frequentes. De toda forma, quem tem parentes de primeiro grau com o diagnóstico da doença, ainda mais se for em idade precoce, deve ter uma atenção especial ao diagnóstico.
Os sintomas mais comuns desse tipo de câncer, conforme Carolina, envolvem alteração do hábito intestinal — sejam períodos de constipação ou diarreia —, sangramento nas fezes anemia de causa não identificada. Pereira complementa que sinais como perda de peso, alteração do apetite e sensação de cansaço também podem ser sinais da doença.
Já o tratamento pode envolver cirurgia e/ou quimioterapia e radioterapia. Conforme Palladino, a primeira opção costuma ser indicada quando a doença é localizada — ou seja, não se espalhou para outras regiões do corpo — e pode curar o paciente.
— Quanto mais precoce o diagnóstico, maior a chance de um tratamento curativo. Podemos fazer também quimioterapia e radioterapia para aumentar a chance de cura do paciente. Já na doença avançada, em algumas situações específicas, o tratamento até pode ser curativo, mas isso é menos frequente. Nesse caso, a maioria das pessoas faz o tratamento para controle da doença com drogas, como a quimioterapia — esclarece o especialista do Inca.
A chance de cura chega a 90% quando o tumor é identificado em estágio inicial. Mas, quando está avançado, com metástases, cai para cerca de 10%.
Estudo revolucionário, mas ainda inicial
Questionado sobre a importância de seu estudo, o biomédico brasileiro salienta que o trabalho aborda a pesquisa e eventual tratamento de câncer através de uma perspectiva completamente diferente do que foi tentado até hoje. Por isso, a ideia está sendo bastante celebrada em diversos países. O pesquisador espera que a abordagem dê início a uma nova classe de medicamentos contra a doença, que possam ser mais eficazes e com menos efeitos colaterais.
— A ideia de tratar o câncer dessa maneira ao invés da convencional é muito maior do que essa combinação de drogas que vamos testar. Elas podem funcionar ou não, mas a abordagem de procurar drogas na direção oposta do que tínhamos até agora é a parte mais promissora de tudo. Acredito que tem boas chances de mudar a maneira como vemos o tratamento do câncer — ressalta Dias, acrescentando que outros pesquisadores já estão testando combinações de drogas baseadas na sua ideia.
A oncologista clínica do Icesp opina que a forma diferente de entender o problema é revolucionária e que, talvez, a estratégia possa ser utilizada para tratar outros tipos de tumores. Para Carolina, a descoberta também demonstra a importância das pesquisas básicas e da ciência como um todo.
— Temos grandes expectativas agora em relação a essa próxima etapa dessa pesquisa, mas acho importante enfatizar que, apesar de todo o desejo de que isso se relacione a um tratamento muito efetivo, ainda vamos demorar alguns anos para tê-lo na prática clínica. Vai demorar muito até que todos esses testes sejam feitos. Mas acho que é um estudo inovador e revolucionário nesse ponto — afirma.
O médico e pesquisador do HCPA concorda que é uma ideia inovadora, mas enfatiza que a pesquisa ainda está em fase pré-clínica e que ainda não houve testes em humanos. Também comenta que há muitas drogas novas sendo pesquisadas e que o processo até a disponibilização de novos tratamentos é bastante demorado.
— Se a droga se mostra efetiva na fase animal, passa a ser testada em pacientes. E aí, infelizmente, uma boa parte das drogas novas acaba falhando, porque não chega a funcionar ou porque funciona, mas é muito tóxica. Então, tem um caminho entre a abordagem inicial e a finalização de todos os testes em humanos. É um período que varia, dependendo da droga, entre 10 e 15 anos. Precisamos de um tempo para que as coisas possam ser feitas com segurança, porque não podemos prejudicar as pessoas.
Já Palladino classifica a abordagem como “promissora” e “interessante”, mas faz a mesma ressalva que Pereira: trata-se de um estudo muito inicial, que ainda precisa ser testado.