Talvez você já tenha ouvido uma história semelhante. Alguém que estava doente e, com uma rede de suporte de familiares, amigos e conhecidos, conseguiu avançar no processo de tratamento e cura.
Na psicologia, as relações de causa e efeito são multifatoriais e esse não deve ser o único motivo atribuído. Mas especialistas concordam que o ser humano é um ser social, e as relações de cuidado e afeto estão diretamente relacionadas à melhora do prognóstico e à qualidade de vida.
Estudos desenvolvidos ao longo dos anos, a partir de teorias como a do apego, de John Bowlby (1989), apontam que as pessoas têm de estabelecer relações de afeto e segurança desde o momento do nascimento. Essas ligações sociais impactam tanto nas questões comportamentais quanto nas fisiológicas. E têm reflexos para o bem ou para o mal.
A professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Feevale Juliana da Rosa Pureza diz que as relações afetivas seguras ativam os sistemas de regulação emocionais de tranquilização e liberam substâncias como ocitocina (hormônio do amor) e opioides (controle da dor), desencadeando emoções como contentamento, segurança, tranquilidade e conexão. A partir delas, marcadores biológicos apresentam melhora, como o sistema circulatório, o sistema imunológico e a variabilidade da frequência cardíaca, que está associada a menor estresse e a menor tendência a doenças cardiovasculares.
Por outro lado, quando esse sentimento de segurança é reduzido, pode haver desregulação nos estados emocionais de estresse, medo e ansiedade. O resultado é relacionado à liberação de adrenalina e cortisol – comumente conhecido como o hormônio do estresse -, que, quando prolongada, pode piorar os indicadores de saúde física e mental.
A capacidade de formar conexões seguras, de cuidar e ser cuidado, é um dos mecanismos mais evoluídos que a gente tem.
PROFESSORA DE PSICOLOGIA
Juliana da Rosa Pureza
— A capacidade de formar conexões seguras, de cuidar e ser cuidado, é um dos mecanismos mais evoluídos que a gente tem e ajuda a controlar os sentimentos mais primitivos, como o da ansiedade e o da tristeza. Quando uma criança se machuca e recebe afeto, por exemplo, o estresse é regulado e ela consegue se acalmar — afirma Juliana.
Ao fazer a leitura dos sentimentos, é o corpo que começa a dar sinais. Se o estresse e a liberação de adrenalina não forem controlados, há a manifestação de sintomas como batimentos cardíacos acelerados e sudorese excessiva. Quando o perigo continua e não é eliminado, o corpo segue produzindo cortisol.
— Se temos a liberação de estresse consecutivo, por muito tempo, o organismo começa a entender que aquilo vai ocorrer a todo momento. Assim, há uma predisposição de os sinais se localizarem em algum lugar e se transformarem em uma doença — resume a diretora do Núcleo de Intercâmbio com a Comunidade da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul (SPRGS), Larissa Montardo Machado.
Outra consequência da relação direta com o estresse, segundo a professora no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Unisinos Ilana Andretta, é a diminuição da imunidade, seguida pela consequente sujeição a vírus, bactérias e outras infecções.
Questão de sobrevivência
Para além dos benefícios fisiológicos e comportamentais que o afeto pode trazer, especialistas destacam que essa também é uma questão de sobrevivência. A professora Juliana exemplifica: em espécies que não estabelecem relações de apego afetivo, apenas 1% a 2% dos membros chegam até a idade adulta para se reproduzir.
Os mamíferos ancestrais do ser humano se desenvolveram em ambientes considerados hostis porque adotaram ações como o compartilhamento de comida e assistência a outros membros da espécie. Foi aí que as relações de cuidado e compaixão passaram a evoluir.
O mamífero, com um grupo social cuidando dessa ninhada, tem mais chances de prosperar. Isso foi fundamental para a evolução da espécie humana.
PROFESSORA DE PSICOLOGIA
Juliana da Rosa Pureza
— A gente sabe que os mamíferos desenvolveram a possibilidade de viver em clã. Os répteis ou seres mais primitivos, que ficam sozinhos ao nascer, têm filhotes mais sujeitos a predadores e pragas. Já quando o mamífero tem um grupo social cuidando dessa ninhada, há mais chances de prosperar. Isso foi fundamental para a evolução da espécie humana — descreve Juliana.
E se o ser humano se constrói na relação, nos primeiros anos de vida isso fica ainda mais evidente. A demanda imediata do bebê é alguém que forneça as necessidades básicas, como alimentação. Mas o afeto também cumpre papel essencial nesses momentos iniciais.
De acordo com Larissa, da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul, dificilmente um bebê vai se desenvolver sem um cuidador. Ela lembra que não precisa, necessariamente, ser a mãe ou o pai, mas alguém que faça a manutenção da criança no sentido emocional.
— O bebê não consegue controlar o estresse sozinho. Ao longo do tempo, o nosso emocional vai sendo constituído junto com o sistema fisiológico. É por isso que os primeiros anos de vida são muito importantes. O cuidado dessa fase vai ser referência para depois, quando se começa a desenvolver a complexidade maior das emoções — afirma Larissa.
Período da enchente mostrou o poder do afeto na prática
Outro ponto trazido pelas especialistas é o da situação recentemente vivida por milhares de gaúchos durante a enchente que atingiu o Estado. Com sofrimento coletivo em diversas regiões do Rio Grande do Sul, as comunidades buscaram apoio umas nas outras. Assim se formou uma grande rede de voluntários, doações e solidariedade, em que o poder do afeto foi demonstrado na prática.
— A gente viu no desastre o que o ser humano tem de melhor e de pior. Talvez alguém não tenha sido atingido de forma direta, mas de maneira indireta todos se sentiram impactados. Por meio das conexões afetivas, as pessoas vivenciaram a tristeza e acabaram impelidas a ajudar. Essa mobilização tem a ver com a preservação da espécie, porque a nossa resposta diante da ameaça iminente é a ação — analisa a professora Ilana.
Compaixão é a palavra utilizada por Juliana para traduzir a manifestação. O termo significa que, ao ver a dor do outro, a pessoa sente desconforto e há um movimento para buscar aliviar o emocional de quem foi afetado. Além de auxiliar quem está se doando, o alvo do afeto também é beneficiado ao lidar com o sofrimento.
Ensaio clínico com base na teoria do apego tem inscrições abertas
Baseado na teoria do apego para prevenção da depressão, um ensaio clínico está sendo desenvolvido pelo psiquiatra Giulio Bertollo Alexandrino, com coordenação da professora do departamento de Psiquiatria e Medicina Legal da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Neusa Rocha.
Jovens de 18 a 24 anos podem participar da terapia em grupo, que ainda tem vagas para participantes interessados. O projeto “Deu pra ti, baixo astral” tem duração de seis semanadas e encontros no Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA). Um grupo de participantes já está em execução, mas, como se trata de um ensaio clínico, os resultados ainda não estão consolidados.
As intervenções psicoterápicas são executadas por dois terapeutas, um médico e um estudante de Medicina. Interessados em integrar o grupo, que se encaixem nos critérios, devem preencher formulário disponível no link www.bit.ly/3u55ulb
Dicas das especialistas sobre como explorar os benefícios do afeto
- Usufruir das relações seguras, que são fonte de afeto e nutrem emocionalmente .
- Estar mais perto das pessoas, o que libera ocitocina, o “hormônio do amor e bem-estar”.
- As relações são uma via de mão dupla. Os envolvidos de ambos os lados devem ter investimento e disponibilidade.
- O isolamento deve ser avaliado caso a caso, pois as pessoas têm necessidades diferentes. Não há impedimento para alguém que possa parecer isolado ter relações seguras e se nutrir delas.
- Se estiver tendo dificuldades de estabelecer relações, buscar o auxílio de profissionais da saúde.
- A psicoterapia é uma das aliadas desse processo, pois mostra a diferença entre o mundo real e o que o indivíduo percebe.
Outros conteúdos indicados pelas profissionais
Livro “Por que o amor é importante: como o afeto molda o cérebro do bebê”, da psicanalista Sue Gerhardt
A obra mostra que os estímulos aos bebês, como os momentos de carinho e brincadeiras, são a base de seu desenvolvimento. Por meio do afeto nos primeiros anos, as consequências repercutem na saúde física e emocional do decorrer da vida.
Filme “Divertida Mente”
Em formato de animação, o filme da Pixar mostra como cinco emoções (alegria, tristeza, medo, raiva e nojo) interferem na vida de uma menina de 11 anos que acaba de mudar de casa.
Filme “Livre”
Ao longo de uma trilha quilométrica em meio à natureza, transformada em uma jornada de autodescoberta, a protagonista relembra de momentos da vida e reflete sobre o que a aguarda no futuro.