Em estudo recente publicado no periódico Lancet Regional Health: Americas, pesquisadores do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA) identificaram o impacto de fatores de risco potencialmente preveníveis para demência na população brasileira. O trabalho avaliou o percentual de casos de demência que seriam evitados se esses fatores de risco fossem controlados na população. A conclusão principal da pesquisa, liderado pelos médicos Raphael Machado Castilhos e Wyllians Vendramini Borelli, foi de que em torno de 50% de todos os casos de demência no país poderiam ser evitados. Isso significa que, se controlados os fatores de risco, os número da demência no país poderiam ser reduzidos pela metade.
Castilhos é neurologista e pesquisador do HCPA, além de ser professor do Programa de Pós-graduação em Medicina: Ciências Médicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Borelli é médico residente em neurologia e pesquisador do HCPA, com período de formação na Université Paris-Sud (França) e na New York University (EUA).
O objetivo principal do estudo foi estimar a fração atribuível populacional (population attributable fraction) de fatores de risco de demência entre adultos com mais de 50 anos, ou seja, se um fator de risco fosse eliminado da população, um percentual de casos de demência seria reduzido. Os fatores de risco são condições que aumentam a chance de desenvolver uma doença — no caso, demência. O tema é de especial interesse porque o Brasil e outros países de baixa escolaridade e em desenvolvimento apresentam um número crescente de casos. No entanto, o que mais surpreende é que a maior parte das pessoas que apresentam demência estão sem diagnóstico, segundo outro estudo publicado no Lancet em 2014.
— O estudo avaliou o percentual de casos potencialmente preveníveis de demência e não especificamente de doença de Alzheimer. Esses dois conceitos são comumente confundidos — aponta o neurologista Castilhos. — A doença de Alzheimer é a principal causa de demência, mas não é a única. Entende-se por demência toda a doença cerebral que resulte em declínio cognitivo e que leve consequentemente a um impacto nas atividades do dia a dia.
Tipos de demência
- Doença de Alzheimer: é a causa mais frequente de demência no mundo. Estima-se que haja 35,6 milhões de pacientes. Provoca principalmente déficit de memória.
- Demência vascular: ocorre geralmente após um acidente vascular cerebral (AVC), ou em pessoas que tem problemas cardiovasculares não controlados por anos.
- Demência por corpúsculos de Lewy: menos frequente, tem início com alucinações e pode ser confundida com Parkinson.
- Demência frontotemporal: geralmente começa mais cedo do que as outras. Altera comportamento, linguagem e habilidade de planejamento.
Existem várias funções cognitivas que podem ser afetadas por diferentes tipos de demência, como memória, linguagem e atenção. A doença de Alzheimer é o tipo de demência mais mencionada no Brasil e no mundo por ser a mais comum e afetar principalmente a memória — a habilidade de lembrar de eventos recentes e passados.
Os autores coletaram informações de 9.412 indivíduos da população brasileira pertencentes a diversas regiões e que participaram do ELSI-Brasil (Estudo Longitudinal da Saúde de Idosos Brasileiros), conduzido originalmente pela Fiocruz-Minas. Este estudo tem uma abordagem chamada de epidemiológica e tem capacidade de estimar a prevalência de diversas condições no país.
A relação entre perda auditiva e perda cognitiva ainda foi pouco estudada, mas se acredita que a audição tem influência por efeito direto no isolamento social, na estrutura cerebral e na carga de esforço necessária para a relação social.
WYLLIANS VENDRAMINI BORELLI
Médico residente em neurologia no Hospital de Clínicas de Porto Alegre
Os 10 fatores de risco identificados, em ordem decrescente de impacto na prevenção da demência no país, são: perda auditiva, sedentarismo, hipertensão, baixo nível educacional, depressão, obesidade, diabetes, tabagismo, isolamento social e uso excessivo de álcool. Vale lembrar que medidas de saúde pública contra o tabagismo fizeram-no o penúltimo fator modificável no Brasil, dado que contrasta com o de outros países desenvolvidos que não tiveram esse tipo de política pública.
A perda auditiva foi o fator de risco com maior impacto na demência na população brasileira. Isso significa que, quando bem controlada, a perda auditiva tem um potencial grande de prevenir novos casos de demência no país — aproximadamente 14,2% dos casos. Ainda mais impressionante, quase um terço da população brasileira relatou que tem algum tipo de perda auditiva.
— A relação entre perda auditiva e perda cognitiva ainda foi pouco estudada, mas se acredita que a audição tem influência por efeito direto no isolamento social, na estrutura cerebral e na carga de esforço necessária para a relação social. De todas formas, essas teorias ainda precisam ser confirmadas para entendermos melhor a relação entre surdez e demência. Mas a prevenção pode ser feita de imediato — defende o médico Borelli.
Os 10 fatores de risco
Em ordem decrescente de impacto na prevenção da demência no país:
- Perda auditiva: 14,2%
- Sedentarismo: 11,3%
- Hipertensão: 10,4%
- Baixo nível educacional: 9,5%
- Depressão: 6,9%
- Obesidade: 6,3%
- Diabetes: 3,6%
- Tabagismo: 2,9%
- Isolamento social: 1,5%
- Uso excessivo de álcool: 0,2%
O sedentarismo é um dos maiores problemas da sociedade moderna. A falta de exercício físico gera problemas importantes por todo corpo, incluindo o aumento do risco de demência. Especificamente, eliminar o sedentarismo reduziria em 11,3% os casos de demência no Brasil, e quase metade da população brasileira relata que não faz atividade física regularmente.
— Aqui vale a lembrança de que esse estudo investiga apenas o cérebro, mas o sedentarismo está também associado a outras doenças, como infarto do miocárdio e AVC. Geralmente, o sedentarismo vem associado a outras condições que aumentam a chance de ter doenças, como alimentação com poucas fibras, depressão e obesidade — observa Castilhos.
Escolaridade pode garantir "poupança cerebral"
Os países em desenvolvimento, incluindo o Brasil, usualmente apresentam baixo nível educacional quando comparados com países desenvolvidos. Os adultos e idosos avaliados nesta pesquisa apresentavam uma média de 4.4 anos de estudo, enquanto a média para estudos semelhantes em países desenvolvidos atinge 10 a 11 anos.
— A escolaridade é importante para prevenir demência por causa da reserva cognitiva. Esse conceito é semelhante a uma "poupança cerebral", que é construída com os anos de estudo e de esforço cognitivo. Um trabalho que exige muito esforço, como uso frequente de lógica e de solução de problemas complexos, gera uma maior reserva cognitiva do que um trabalho que não precise tanto esforço — comenta Borelli. — No estudo, se todas as pessoas tivessem mais do que quatro anos de escolaridade, 9.5% dos casos de demência seriam reduzidos.
A saúde mental também foi identificada como um determinante do bem-estar dos idosos. A depressão está relacionada à maior mortalidade em idosos, além de piora da qualidade de vida. O relato de depressão foi maior em mulheres do que em homens no estudo, o que já se sabia de estudos anteriores. No Brasil, 24% das mulheres relataram sofrer com depressão, enquanto 10% dos homens tiveram a mesma queixa. A influência da depressão no desenvolvimento de demência é bem caracterizada, e aumenta significativamente o risco de desenvolver perda cognitiva. Esses dados indicam que a depressão deve ser investigada mais ativamente em mulheres do que em homens, por elas estarem mais vulneráveis a esse tipo de patologia.
Para os dois médicos, os fatores de risco identificados devem ser priorizados no combate à demência, ação especialmente importante por não existir atualmente nenhum medicamento capaz de cessar (ou mesmo lentificar) a progressão da maioria das causas de demência. Estratégias de saúde pública — isso incluindo planejamento federal e estadual — deveriam focar nesses fatores de risco para reduzir o "impacto assombroso da demência no país, o qual só tende a crescer com o tempo". Castilhos e Borelli concluem:
— Evitar a demência é uma longa jornada a ser percorrida. Em primeiro lugar, é essencial identificar quem são as pessoas com demência, quantas são, e estimar qual o impacto nacional desta doença. Assim, podemos traçar estratégias de saúde pública que envolvam não somente o controle dos fatores de risco mas também a conscientização da população e do desenvolvimento de políticas públicas para promover a saúde.