As regras e a infraestrutura das cidades jogam contra as pessoas com deficiência (PCDs). As calçadas sem rampas se transformam em muros para usuários de cadeiras de rodas. O piso tátil instalado de maneira inadequada expõe pessoas cegas a acidentes. E a escassez de um cardápio adaptado ou de profissionais habilitados a falar a Língua Brasileira de Sinais (Libras) dificulta, até mesmo, a ida de quem tem deficiência auditiva a um restaurante.
O mundo prioriza corpos e habilidades padrão enquanto, aproximadamente, 45 milhões de brasileiros vivem com algum tipo de deficiência física, segundo o Instituto Brasileiro de Economia e Estatística (IBGE).
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Os primeiros dias de dezembro marcam uma forte campanha em prol das PCDs. Em 3 de dezembro, temos o Dia Internacional da Pessoa com Deficiência, no dia 5, o da Acessibilidade, e o 9 de dezembro marca o Dia Nacional da Criança com Deficiência. As datas estão nos calendários, leis de inclusão e acessibilidade foram aprovadas, mas as dificuldades persistem.
Moradora da Capital e usuária de cadeira de rodas desde 2009, Katia Santos, 48 anos, conta que, há mais de 10 anos, ela não vai ao bairro Centro Histórico por se sentir insegura. Os diversos obstáculos presentes nas calçadas, os desníveis e as lajotas soltas comprometem sua circulação – de maneira independente – pela região.
— Infelizmente, Porto Alegre é uma cidade muito inacessível. O Centro é muito ruim, mas também não é exclusividade dele. Os bairros Menino Deus e Moinhos de Vento também não foram pensados para a gente. Nos bairros periféricos, a situação é ainda mais grave. Tenho medo de sair sozinha com minha cadeira de rodas, porque já tombei aqui nas calçadas do meu bairro, tive que ser levantada por estranhos. É uma situação muito constrangedora e revoltante, porque nos é ceifado o direito de ir e vir. Quero ter a liberdade de sair sem precisar de ajuda — desabafa Katia.
A falta de acessibilidade universal faz com que a ida ao supermercado se torne um desafio, já que muitas rampas são íngremes ou irregulares demais. Quando se tratava de um encontro com as amigas, a escolha do local onde aconteceria o happy hour também precisava ser ponderado:
— Muitos bares não têm rampa ou elevador. Não consigo explorar a cidade e acabo restringido meu deslocamento aos poucos lugares que eu sei que estão, minimamente, preparados para me receber. Além disso, muitas vezes, me vejo na situação de ter que calcular se preciso ir ao banheiro antes de sair de casa, porque pode ser que eu não ache um adaptado durante um compromisso na rua.
"As pessoas nos tornam invisíveis", diz Gisele
Percalços também fazem parte do cotidiano de Gisele Oliveira, 48 an os, pedagoga, psicóloga e especialista em diversidade e inclusão. Ela é uma pessoa cega desde que nasceu e, além de deparar com pisos táteis mal instalados que a levam a tropeçar no mobiliário urbano, situações que são vividas com casualidade por indivíduos sem deficiência são um grande desafio para Gisele.
Uma delas é o pagamento por meio de cartão. A maioria das máquinas são com teclado touch, sem indicação em Braille, o que torna impossível a correta digitação da senha. Quando o teclado é feito com botões, eles não seguem uma padronagem, o que provoca erros de senha. Mais: segundo Gisele, os dispositivos não têm sistema que fale o valor digitado pelo operador de caixa. Por isso, ela precisa acreditar e confiar que não agiram de má fé.
_ Nos restaurantes, poucos são os locais que têm cardápio em Braille. Mas observo que há situações que podem ser amenizadas se a equipe de atendimento tiver o correto treinamento. Por exemplo, o garçom pode ficar comigo e apresentar todo o cardápio. Tempos atrás, entrei em uma loja de sapatos e, pelo toque, gostei de um modelo. Perguntei quais cores estavam disponíveis e o atendente respondeu: só temos essa. Mas eu não enxergo, não tenho como adivinhar. A atitude da população não é inclusiva, falta acessibilidade atitudinal _ pontua.
A psicóloga relata que, nos supermercados, os leitores de preços não são por voz e isso faz com que ela sempre tenha de ir acompanhada no momento das compras:
_ As pessoas nos tornam invisíveis, tiram a nossa autonomia, nosso potencial, a nossa humanidade por termos habilidades diferentes, que são fora do padrão. Minha filha é formada é balé clássico e nunca, em nenhuma apresentação dela, havia audiodescrição.
Um estrangeiro no próprio país
A batalha para se comunicar com as pessoas começou ainda no Ensino Fundamental para William Gonçalves, 30 anos. No colégio, ele tinha que fazer uso da escrita em língua portuguesa para falar o que queria. Além dessa barreira, era alvo do preconceito dos falantes de português:
— Não tinha ninguém para me ajudar. Conseguia e consigo me comunicar e ter minhas demandas atendidas porque sei escrever em português. É cansativo perceber que, até hoje, tenho dificuldade de ir no médico e saber meu diagnóstico para alguma doença por ele (o médico) não falar Libras. É cansativo tentar tirar alguma dúvida com o gerente do banco. Para casos menos graves, eu escrevo, mas quando o assunto é saúde, sou obrigado a ir acompanhado de alguém que interprete meus sinais e o português. Perco minha autonomia.
Ao longo da vida, William conta que foi atendido somente uma vez por um profissional da saúde que sabia falar Libras e jamais foi a um evento cultural que tivesse tradução.
A arte de pertencer
A exclusão das PCDs do convívio social é flagrante. Contudo, surgem iniciativas que buscam promover e fomentar a liberdade de circulação por todos os espaços culturais e das artes. O projeto Pertence, de Porto Alegre, sugeriu e teve aprovado, em 2019, o Dia do Teatro Acessível na cidade. A data busca garantir que pessoa com deficiência tenha liberdade, autonomia e acessibilidade, afirma Geniane Pereira, coordenadora administrativa no Pertence.
— Neste ano, promovemos um evento que visava difundir e compartilhar aos princípios da metodologia do Pertence através de experiências acerca de temáticas como: cultura, saúde, diversidade, acessibilidade e inclusão. O objetivo foi disseminar o conhecimento para que mais pessoas, instituições e projetos tenham acesso e possam reproduzir nossas estratégias.
*Ana Beatriz Pacheco atuou na tradução e interpretação de Libras para português nesta reportagem.