Ansiedade, estresse, tensão e humor deprimido sobrecarregam a mente e o corpo, que vêm sendo severamente testados neste ano de restrições e incertezas apresentadas pela pandemia de coronavírus. Uma região que pode acusar um desconforto bastante comum é a face. O bruxismo, caracterizado pelo apertar ou ranger de dentes — ações comuns em todos nós, variando conforme a frequência e a intensidade —, ocorre durante o sono ou nos períodos de vigília. Pode provocar dores e cansaço na mandíbula e na musculatura, dor de cabeça e dificuldade para abrir a boca. Com o tempo, desgaste e até fraturas na dentição estão entre as consequências possíveis.
João Piscinini, cirurgião-dentista especialista em Saúde Coletiva, explica que o bruxismo não é definido como doença, mas, sim, parafunção: um hábito não saudável. Existem pacientes com o costume de apertar e/ou ranger os dentes.
— O ranger está mais associado ao desgaste dos dentes. Há o desgaste do esmalte e depois o da dentina, que é o tecido que fica abaixo do esmalte. Pode causar dor porque a dentina se comunica com a polpa, onde ficam os vasos e os nervos do dente — detalha Piscinini.
Professor do Programa em Odontologia da Escola de Ciências da Saúde e da Vida da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), o cirurgião-dentista Márcio Lima Grossi destaca a característica repetitiva envolvendo os músculos da mastigação.
— Apertar, encostar, bater ou ranger os dentes, bem como movimentar a mandíbula (queixo) para a frente, ao mesmo tempo em que se pressionam a língua e as bochechas contra os dentes — define Grossi, também docente da pós-graduação, mestre em Oclusão e doutor em Pesquisa Clínica.
Os danos nos dentes já servem de pista para o dentista, explica Piscinini, quando o paciente procura atendimento. Grossi afirma que o bruxismo que acomete o indivíduo no período diurno (em vigília) é facilmente percebido e de fácil diagnóstico. O exame considerado ideal para a detecção é a polissonografia, realizada em laboratórios do sono. Pelo alto custo, é inacessível para grande parte da população.
O mais frequente, portanto, é a identificação baseada no relato de sintomas e na avaliação clínica. Além dos sinais já descritos acima, sensibilidade dentária, dor e estalidos na articulação temporomandibular (em frente ao ouvido), marcas de dentes na língua e nas bochechas e músculos aumentados na região das bochechas (masseteres) também figuram entre os indícios.
— Quando os sintomas aparecem pela manhã, é provável que o bruxismo tenha ocorrido durante o sono. Quando surgem no final da tarde, é mais provável que tenha ocorrido durante o dia ou em vigília. Ambos os tipos podem afetar um mesmo indivíduo — esclarece Grossi.
Tratamento com placa de acrílico
Ao avaliar o quadro, o dentista orientará quanto a possíveis restaurações que precisem ser feitas nos dentes. O tratamento do bruxismo envolve a confecção de uma placa de acrílico, colocada na hora de dormir, que é suficiente para prevenir o desgaste e eliminar o cansaço e as dores. Os estalidos, diz o professor da PUCRS, tendem a diminuir com o tempo.
Se o paciente retardar a procura por atendimento, pode padecer de uma deterioração mais acelerada dos dentes, se comparada àquela que se espera normalmente com a idade. A combinação das avarias acentuadas com o aumento do principal músculo da face (masseter) pode resultar em problemas estéticos.
— A dor na cabeça e/ou na face não tratada pode originar dor crônica, que normalmente é mais difícil de tratar do que a dor aguda de curta duração. A dor crônica pode levar à perda de produtividade, à inatividade, ao aparecimento de depressão e à procura de vários profissionais de saúde para o tratamento sem sucesso, além da frustração do paciente — lista Grossi.
É importante que o paciente seja orientado a procurar outros profissionais, quando necessário.
— Aliado ao tratamento com a placa, tem que ter o tratamento dos fatores que fizeram a pessoa chegar a essa situação extrema. Muita vezes, vem junto o tratamento da ansiedade, da depressão — salienta Piscinini. — Durante o dia, se você se percebe apertando os dentes, é o momento de parar, descansar uns minutos, respirar um pouco, fazer algo que traga sensação de bem-estar — exemplifica o dentista.
Piscinini percebeu, no decorrer do ano, aumento no número de indivíduos procurando consultórios com queixas compatíveis com o diagnóstico de bruxismo, o que se assemelha aos relatos de seus colegas de profissão. A pandemia e todas as múltiplas implicações desta época totalmente atípica são cogitadas como possíveis influências.
— Entendemos que pode ter uma relação bem direta com todas as emoções envolvidas. As pessoas têm relatado a angústia de não saber até quando a pandemia vai, não conseguir se programar. Isso gera tensão, uma situação de estresse que faz com que o paciente acabe apertando mais os dentes — constata o cirurgião-dentista.
Segundo Grossi, ainda não há estudos concluídos ligando o aumento do bruxismo no período de disseminação do coronavírus. Graduandos de Odontologia e Psicologia da PUCRS vêm conduzindo uma pesquisa que, como resultado resultado parcial, mostra percentuais preocupantes. Antes da pandemia, havia prevalência de 8% do bruxismo do sono e de 6% do bruxismo em vigília entre um grupo de universitários da instituição. Com a deflagração da crise sanitária global, o bruxismo do sono registrou aumento de quase cinco vezes, passando para 28%, enquanto o de vigília duplicou, ficando em 12%. Os motivos para a elevação, informa o professor, ainda não foram completamente determinados. Outra pesquisa, parceria entre os programas de pós-graduação da Odontologia e da Psicologia, por sua vez, fornece pistas: verificou-se aumento de sintomas de depressão e ansiedade, bem como de distúrbios do sonos, ao longo dos meses de pandemia de Sars-CoV-2.
Existe predisposição?
Uma série de fatores está na origem do bruxismo. Entre os motivos conhecidos como exógenos ou periféricos, de acordo com o cirurgião-dentista Márcio Lima Grossi , estão a ansiedade, o estresse e o uso de medicação ou substâncias que afetam o sistema nervoso central (principalmente estimulantes). As causas chamadas de endógenas ou sistêmicas seriam doenças neurológicas, psiquiátricas e do sono, que também têm impacto no sistema nervoso central.
— Em casos de bruxismo com queixas de problemas neurológicos, psiquiátricos ou de sono, é importante também uma avaliação médica — adverte Grossi.
Tem cura?
O bruxismo não é doença, como já exposto nesta reportagem, e, sim, uma atividade repetitiva dos músculos da mastigação. Grossi explana que isso ocorre em todas as pessoas, sem sintomas, e nos acompanhará por toda a vida, variando em frequência e intensidade. É mais comum nas crianças, diminuindo com o avançar do desenvolvimento.
— O bruxismo do sono, em baixa intensidade, é normal. Ajuda a regular a passagem do ar nas vias aéreas superiores e também na lubrificação da cavidade oral pela produção simultânea de saliva, que fica reduzida durante o sono — diz o professor da PUCRS.
Os sintomas podem aparecer em algum momento, alerta Grossi:
— Consultamos o cirurgião-dentista para prevenir o aparecimento de cáries e doença periodontal, e ele pode detectar sinais de desgaste excessivo antes que maiores danos sejam causados à estrutura dental e antes do aparecimento de sintomas de dor e cansaço na cabeça e na face.
Mulheres, em geral, sentem mais dor e fadiga, além dos danos aos dentes, e costumam procurar um especialista nos estágios iniciais. Homens, comenta Grossi, buscam atendimento quando o problema já se encontra em estágio mais avançado. Eles não relatam dor, somente o desgaste excessivo da dentição e o aumento dos músculos faciais.
João Piscinini, cirurgião-dentista, resume:
— O bruxismo tem controle. Para não precisar mais usar a plaquinha, o paciente precisa não estar mais apertando ou rangendo os dentes.
Cinco dicas
- Exames de rotina com o dentista são recomendados para todos, em intervalos de seis meses, para prevenir doenças orais em geral.
- O diagnóstico e o tratamento precoces do bruxismo são fundamentais, pois previnem consequências que podem se tornar cada vez mais sérias.
- Um cirurgião-dentista ou um dentista que atue como clínico geral pode recomendar, se for o caso, o encaminhamento para um especialista em disfunção temporomandibular.
- Quando o bruxismo chega ao ponto de quebrar dentes, essas fraturas podem ser de vários níveis: acometendo só o esmalte, atingindo o esmalte e a dentina ou até expondo a polpa do dente.
- Dentes com restaurações, por melhores que sejam, não são tão resistentes quando os dentes sem intervenções.