Inconformado com a desatenção do eixo Rio-São Paulo para intelectuais de outras regiões do Brasil, o escritor gaúcho Alcides Maya publicou, no início dos anos 1900, um artigo no qual defendia que o Rio Grande do Sul tinha, sim, grandes pensadores. Um dos argumentos era peculiar: a suposta semelhança do clima gaúcho com o grego: “Climas temperados como o da Grécia exercem ação benéfica sobre a civilização, sobre o desenvolvimento da arte e da ciência”, escreveu.
A ciência sabe, hoje, que os argumentos de Maya estão equivocados (a temperatura de uma região não é responsável pela inteligência dos habitantes). Mas a curiosidade do escritor sobre como o clima influencia nossa personalidade e nosso humor também acomete pesquisadores há séculos. Brasileiros seriam mais extrovertidos por causa do calor? Europeus seriam mais reservados por causa do frio?
O assunto é espinhoso e gera debates, mas é consenso entre pesquisadores que o determinismo ambiental caiu por terra na década de 1950. Essa antiquada teoria argumentava que regiões mais quentes são fadadas a serem pobres, enquanto regiões frias, a serem ricas. A base desse pensamento ultrapassado é de que, no Hemisfério Norte, a população teria sido obrigada a arquitetar formas de vencer as adversidades, o que em última instância teria favorecido a organização e o desenvolvimento da tecnologia.
Hoje, a ciência sabe que, isoladamente, nem clima nem qualquer outra razão específica detêm tamanho poder sobre as pessoas. Somos resultado de uma série de influências, como cultura, violência, pobreza, experiências de vida e histórico familiar.
— O ambiente influencia o indivíduo e seu comportamento, e o clima é um desses componentes. Pode afetar nossa vida, às vezes mais, às vezes menos, mas nunca determina — pondera Francisco de Assis Mendonça, geógrafo professor da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e pesquisador dos impactos do ambiente na saúde.
Feita essa ressalva, somos animais e, portanto, respondemos à natureza. Regiões de clima tropical, com calor e grande luz solar na maior parte do ano, favorecem a interação social na rua. Já países com inverno de frio e chuva incentivam a população a recolher-se em espaços fechados, o que contribui para a introspecção. Basta observar, no Rio Grande do Sul, as calçadas lotadas de cadeiras em frente a bares em contraponto à aparente melancolia do inverno.
A chuva ajuda a pegar no sono – uma das teorias é de que as gotas, ao caírem na superfície, vibram em uma frequência que acalma. E até o consumo pode ser afetado pela meteorologia: estudo feito por pesquisadores de Pequim, na China, apontou que, em dias ensolarados, as pessoas embarcam 20% a mais em promoções do que em dias nublados.
Extroversão e arquitetura
O reflexo do clima na personalidade foi analisado em crianças dos Estados Unidos e da China por pesquisadores e divulgado em um estudo publicado em 2017 na prestigiada revista Nature. Na conclusão, os cientistas afirmam que uma criança que cresceu na quente San Diego tem mais chances de ser simpática, exploradora e de apreciar brincadeiras ao ar livre. O trabalho foi alvo de críticas.
— Com condições climáticas que permitem sair de casa e viver na rua, há mais chances de encontrar outros. À medida que você encontra mais pessoas, desenvolve habilidades sociais que não desenvolveria tanto se não saísse de casa. Por outro lado, se você vive em um contexto ambiental que lhe faz ficar mais entre quatro paredes, mas interage em restaurantes ou bares, também irá desenvolver habilidades para ser extrovertido — afirma o alemão Hartmut Günther, que já viveu nos Estados Unidos e hoje é professor de psicologia ambiental na Universidade de Brasília (UnB).
O geógrafo Francisco de Assis Mendonça exemplifica como o clima define, inclusive, a arquitetura. O conceito de sala de estar surgiu na Europa: em uma região na qual o frio dificulta a socialização na rua, é dentro de casa que conhecidos interagem. Cozinha e quarto são espaços muito íntimos para quem não é da família, então surge um cômodo com sofá e cadeiras para receber convidados.
— Por viverem em espaços fechados, europeus tiveram que criar espaços internos de socialização. Na oca do índio, não há sala de estar, não há espaço privado. Se há espaço lá fora em que todo mundo pode ficar, não é preciso ter sala de visita — diz o professor da UFPR.
Conforto térmico e criminalidade
Além de uma cerveja no happy hour, regiões tropicais favorecem a atividade física esportiva ao ar livre, em contraponto à vontade de ficar debaixo das cobertas, típica do inverno. É um reflexo natural: o frio exige do organismo mais esforço (e, portanto, consome mais calorias) para manter o corpo aquecido. Correr na rua, em um dia gelado, só atrapalha essa tarefa, ainda que faça bem à saúde, destaca Ticiana Rodrigues, membro da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM) e professora de Medicina da UFRGS:
— A prática de esportes é um cenário reconhecido para elevar os níveis de serotonina, o que protege contra a depressão.
Sabe-se que o calor excessivo (e o amaldiçoado tempo abafado do verão gaúcho) faz mal ao humor. O corpo precisa liberar calor de forma contínua para manter uma temperatura interna de 37ºC. Se essa troca se dá sem esforço, o indivíduo está em uma situação chamada de “conforto térmico”. Mas, se o ambiente está muito quente, o organismo tem dificuldades em manter o equilíbrio, o que resulta em irritação, cansaço e desconforto. Se você pensa que o verão um dia vai fazê-lo cometer uma loucura, talvez não esteja perdendo a razão: há até pesquisas relatando que há alta na criminalidade em dias muito quentes.
Ao analisar dados dos Estados Unidos e da Europa, pesquisadores notaram que crimes contra pessoas aumentam no verão, enquanto que, no inverno, predominam crimes contra a propriedade. Em outra investigação, o jornal norte-americano The New York Times cruzou dados públicos e descobriu que, em dias chuvosos, há menos crimes – em suma, bandidos ficam mais em casa, a não ser que estejam desesperados.
No Brasil, o geógrafo Mendonça, da UFPR, publicou, em 2001, uma pesquisa feita para sua tese exigida para se tornar professor-titular na qual cruzou a temperatura com os índices de homicídio de 10 capitais brasileiras. Em sete das 10, dezembro e janeiro foram os meses de maior violência, enquanto os meses invernais tiveram a menor média de criminalidade.
— O clima quente é um fator estressante que potencializa reações violentas, sobretudo em comunidades mais vulneráveis, que não têm refrigeração. Mas ele não é determinante, entram outras questões. Em dezembro, as pessoas querem realizar seus desejos, comprar presentes, mudar a casa. Em um país de população marcadamente pobre, muitos efetivam isso por meio de roubos e de assaltos. Além disso, em festas de fim de ano, muitos são tomados pela obrigação de serem felizes ou pela melancolia, então recorrem ao álcool e às drogas, também frequentes em fevereiro, mês do Carnaval. O uso dessas substâncias está associado à violência — reflete o pesquisador da UFPR.
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