O escritor argentino Jorge Luis Borges (1899-1986) tem um conto célebre (Funes, o Memorioso) no qual descreve um personagem que se lembrava de tudo, não apenas "cada folha de cada árvore de cada monte, mas cada uma das vezes que a havia percebido ou imaginado". Borges apresenta essa habilidade como um tormento paralisante. Funes guardava tanta informação que, para reconstituir um dia, gastava outro dia inteiro. Era alguém talvez até incapaz de pensar, porque "pensar é esquecer diferenças, é generalizar, abstrair". Nesse conto, Borges chama a atenção para a importância de um fenômeno que tendemos a achar ruim: o esquecimento. A verdade é que precisamos esquecer.
— O esquecimento é antes de tudo um mecanismo de eliminação natural de informações irrelevantes, sem o qual viveríamos com uma sobrecarga do sistema nervoso — diz a médica Tania Guerreiro, criadora da Oficina da Memória, um espaço sediado no Rio para ativar e estimular funções do cérebro.
É por isso que, do ponto de vista da duração, dois dos três tipos de memórias que temos – a memória de trabalho e a memória de curta duração – culminam no esquecimento, quase instantâneo, em um caso, e após algumas horas, no outro. O terceiro tipo, a memória de longa duração, como o nome já indica, perdura por longos períodos, às vezes uma vida inteira.
Para quem quer entender por que esquecemos e como armazenamos algumas informações selecionadas, saber como funcionam esses três processos distintos é fundamental. Veja abaixo:
Memória de trabalho
A memória de trabalho também costuma ser referida como memória online. Ela dura muito pouco tempo, o necessário para que executemos determinadas funções. É o que nos permite digitar um número de telefone que alguém nos diz ou compreender as frases proferidas por alguém, porque ainda guardamos as palavras anteriores referidas pela pessoa. Depois de uns instantes, essa informação se evapora, sem ter ficado gravada no cérebro.
— Na memória de trabalho, basicamente existe atividade de alguns neurônios enquanto se executam tarefas. Simplesmente mantém um padrão de atividade referente ao estímulo que se acabou de receber. É algo que está próximo da percepção sensorial, mais do que do armazenamento de informações ao longo do tempo — explica o pesquisador Lucas Alvares.
No livro Questões sobre Memória, o pesquisador Iván Izquierdo, referência no assunto, explica que a memória de trabalho "é evanescente por definição e por natureza", dependendo de atividade elétrica em neurônios que se ativam no início, no meio e no fim de cada experiência, sem deixar quaisquer traços bioquímicos ou estruturais.
Memória de curta duração
No caso das memórias de curta duração, ocorrem processos bioquímicos que deixam um registro físico – embora não por muito tempo, apenas por algumas horas. Um determinado ponto do cérebro se modifica.
— Quando tu recebes a informação de uma memória que está sendo formada, alguns neurônios são ativados, e a conexão entre eles é fortalecida. Depois, se houver estímulo suficiente para ativar algum daqueles neurônios, todos serão ativados, porque estão muito conectados, e teremos a lembrança daquela informação — explica Alvares.
Se nada acontecer para consolidar essa memória, porém, o registro físico no cérebro vai desaparecer em pouco tempo. A professora Cristiane Furini explica que isso acontece porque não há necessidade de que aquela lembrança seja armazenada.
— Algumas coisas são importantes no nosso dia a dia para que as armazenemos por longos períodos, como o nome de um filho. Outras não precisam ser guardadas por tanto tempo. Um exemplo é o que eu almocei três dias atrás. Essa informação era relevante por um período de algumas horas. Um mês depois, não é relevante. Por isso essa memória não vai ser armazenada para durar meses ou anos.
Memória de longa duração
As memórias de longa duração são memórias de curta duração que receberam tratamento vip: depois de formada a memória de curto prazo, ela é submetida a um outro processo neuroquímico, com a inserção de proteínas na conexão entre os neurônios, o que a fortalece. Isso faz a lembrança ser mantida, pelo menos por algumas semanas, às vezes por décadas.
— O que a maioria dos pesquisadores pensa é que a memória de curta duração é importante para a manutenção da memória enquanto a memória longa está sendo construída. Seria uma reserva de informação para ser utilizada enquanto a outra não está pronta — afirma Alvares.
Resta entender como nosso cérebro define quais são as memórias que merecerão perdurar, passando por esse processo de consolidação. Na verdade, ele recebe uma série de sinais que vão indicar quais memórias deverão ser "alongadas". Entre esses sinais estão a atenção despendida, a motivação envolvida e as emoções. Quando um memória está carregada de emoções, por exemplo, hormônios e neurotransmissores indicam que se trata de algo importante, que deve receber tratamento espacial.
O ato de evocar e utilizar com frequência uma recordação também sinaliza que ela deve ser mantida. O pesquisador Lucas Alvares explica que aquelas lembranças de infância que as pessoas conseguem evocar décadas depois envolvem alteração muito profunda no nível neuronal. É difícil perdê-las. É por isso que um idoso com dificuldade de formar memórias no presente continua a falar em detalhes sobre o passado distante.
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