Um divisor de águas para prevenir-se contra o HIV, vírus causador da aids, entrou de vez no Brasil em dezembro do ano passado e tem sido alvo de dúvidas e polêmicas. A Profilaxia Pré-Exposição (PrEP) é um tratamento que consiste em ingerir uma pequena pílula azul todos os dias. Funciona como uma espécie de anticoncepcional, mas em vez de evitar a gravidez, reduz em mais de 90% o risco de contrair HIV.
A pílula é composta por duas drogas: tenofovir e entricitabina. Em pessoas soronegativas (aquelas que não têm o HIV), essas substâncias bloqueiam a multiplicação do vírus ao entrar no corpo: o HIV até chega a algumas células, mas é impedido de multiplicar-se pelo organismo – as que estão infectadas são mortas pelo sistema imunológico. O uso do preservativo, no entanto, não deve ser abandonado. É nesse ponto que mora a polêmica: a estratégia é apenas um reforço na proteção e não deve ser vista, nem entendida, como um pretexto para deixar a camisinha de lado.
Dado o potencial da novidade para revolucionar o combate à epidemia de HIV e aids, a Organização Mundial da Saúde (OMS) recomendou, em 2012, o uso da estratégia em populações-chave, as mais afetadas pelo vírus: homossexuais, transexuais, travestis, profissionais do sexo e casais sorodiscordantes (em que um dos parceiros tem o HIV e outro, não – sejam homo ou heterossexuais). A droga já é ofertada no sistema público de saúde da França e da África do Sul e na rede privada de países como Estados Unidos, Bélgica, Escócia, Peru e Canadá.
De olho no que ocorria lá fora, o Ministério da Saúde encomendou uma série de pesquisas para verificar a adesão dos brasileiros ao tratamento. A mais importante, a PrEP Brasil, embasou a decisão do governo federal de disponibilizar, desde dezembro no ano passado, a medicação no Sistema Único de Saúde (SUS) para as populações-chave. É o primeiro país da América do Sul a fazê-lo.
— A PrEP faz parte da prevenção combinada, que inclui uma série de outras estratégias, como uso da camisinha e oferta de terapia antirretroviral para soropositivos. Ou seja, não se deve deixar de usar o preservativo. Em outros países, ela tem demonstrado ser uma forma de impactar a incidência de HIV, principalmente entre homens que fazem sexo com homens. Queremos que ela alcance todos os Estados e seja universal, chegando também à periferia — afirma Adele Benzaken, diretora do Departamento de Vigilância, Prevenção e Controle das Infecções Sexualmente Transmissíveis do Ministério da Saúde.
Efeitos colaterais e acompanhamento
Para fazer parte do tratamento, é preciso ter mais de 18 anos, não ter HIV, expor-se com frequência ao vírus (não usar preservativo ou ter muitos parceiros, por exemplo) e estar disposto a manter o uso do remédio por um período de tempo. O método é acompanhado de perto pela equipe médica, com exames de sangue trimestrais para verificar infecções por doenças sexualmente transmissíveis (DSTs) ou alterações no organismo – caso haja prejuízo de algum órgão, o tratamento é interrompido.
Cerca de US$ 1,9 milhão foram investidos para adquirir 3,6 milhões de comprimidos, o estimado para atender 9 mil pessoas. O remédio será produzido também no Brasil, o que deve reduzir os custos. Hoje, a PrEP é disponibilizada em 11 Estados e 22 cidades, incluindo São Paulo, Florianópolis e Porto Alegre. No futuro, devem ser incluídos mais 16 Estados. Nos próximos cinco anos, a ideia é atender 54 mil pessoas no país, segundo a OMS.
O medicamento mais conhecido, que reúne as duas substâncias, é o truvada. Mas há outros no mercado, como géis aplicados na vagina, e mais alguns em estudo, como drogas injetáveis. Os efeitos colaterais são enjoos, diarreias, vertigens, dores de cabeça e no abdômen, em geral no primeiro mês. A longo prazo, podem surgir problemas no fígado, nos rins e nos ossos.
Um fantasma que volta a assustar
Há, no Brasil, 827 mil pessoas com HIV e cerca de 41,1 mil novos casos a cada ano. Apesar de sermos referência mundial no tratamento, enfrentamos, ao lado de vários outros países, um avanço das infecções entre jovens e uma forte incidência em grupos-chave, em especial homens gays.
No Brasil, entre 2006 e 2015, o percentual de pessoas de 15 a 24 anos com o vírus mais do que triplicou, segundo o Ministério da Saúde. Entre quem tem de 20 a 24 anos, dobrou. Enquanto isso, a Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar (Pense), realizada nas escolas de todo o país com adolescentes de 13 a 17 anos, mostrou que 35,6% dos alunos não usaram preservativos na primeira transa.
A explicação para a maior incidência em jovens é multifatorial, mas pode ser resumida assim: vive-se uma revolução sexual sem o visível fantasma do HIV de décadas atrás, explica o cientista social professor do Departamento de Medicina Preventiva na Universidade de São Paulo (USP) Alexandre Grangeiro. Essa revolução sexual, diz, é pautada sobretudo pela facilidade de obter sexo por meio de aplicativos de relacionamento (Tinder, Happn, Grindr, Hornet, Scruff) e pela maior liberdade na escolha de parceiros que se fortalece nos últimos anos, tanto para heterossexuais quanto homossexuais.
— Nas décadas anteriores, o HIV servia como fator de disciplina da sexualidade, o que não ocorre mais. Junto às mudanças de comportamento sexual, o número de casos sobe. A PrEP reconhece esse novo comportamento, que está aí, e assegura que exista com segurança — diz Grangeiro, também líder nacional da pesquisa Combina, que avalia a adesão e o atendimento à população envolvendo a PrEP.
As populações-chave alcançam índices preocupantes. Se 0,4% da população brasileira tem HIV, a prevalência sobe para 5,3% entre mulheres profissionais do sexo, 19,8% entre homossexuais com mais de 25 anos e até 31,2% entre pessoas trans.
Há dois principais motivos: por sofrerem discriminação, esses grupos têm menor apoio da família e da sociedade para cuidar da própria sexualidade, o que os torna mais vulneráveis; e, estatisticamente, o sexo anal é mais suscetível à transmissão do vírus do que o sexo vaginal.
Realidade cristalizada
Aí, você pode dizer: mas é só usar camisinha. De fato, ela é eficiente em bloquear o HIV e outras DSTs. O problema é que nem gays nem héteros gostam muito dessa opção. Pesquisa do Ministério da Saúde divulgada em 2013 mostrou que 45% dos entrevistados não usam preservativo sempre em relações casuais. Paradoxalmente, 94% dos brasileiros sabe que a camisinha é o melhor método para evitar DSTs.
Na prática, o governo reconhece que as políticas públicas feitas até agora não conseguiram resolver 100% do problema. A PrEP atua para dialogar com uma realidade cristalizada: há pessoas que não usam preservativo sempre. É preciso, então, oferecer uma alternativa.
— O limite das estratégias de prevenção já estava bastante claro. Observamos agora um declínio do uso de camisinha ou de qualquer outro método preventivo. As pessoas devem usar preservativo e, agora, contam com mais uma proteção — acrescenta Grangeiro.
Porto Alegre é a capital com mais pessoas infectadas
Porto Alegre é a capital brasileira onde, proporcionalmente, há o maior número de pessoas com HIV. A incidência é 3,6 vezes maior do que a média brasileira e o dobro da média do Rio Grande do Sul.
Não há uma explicação precisa para o fenômeno. Entre as hipóteses apontadas por Letícia Ikaeda, médica sanitarista do programa de IST/aids da Secretaria Estadual da Saúde (SES), estão a falha em políticas públicas e o fato de o RS ter sido o último Estado a oferecer o teste rápido, que diagnostica a presença de HIV em minutos.
— O teste rápido chegou só em 2013, enquanto, em outros Estados, isso ocorreu em 2009. Houve também uma redução nas atividades preventivas pelo Estado e por organizações. Há ainda especulações sobre o subtipo de HIV predominante a circular por aqui ser o C, enquanto que no Brasil é o B, mas não há prova ainda de que isso contribua. Será que o gaúcho usa menos preservativo? Isso não sabemos, só vamos descobrir com uma pesquisa que devemos fazer no futuro — diz a médica.
É por esse motivo que Porto Alegre foi uma das primeiras capitais a ser escolhidas pelo governo federal para oferecer a PrEP pelo SUS. Hoje, no Estado, 189 pessoas usam a medicação fornecida pelo governo, fora de pesquisas, segundo a Secretaria Estadual da Saúde.
— Temos que oferecer o maior leque de alternativas possível para as pessoas se protegerem — defende Ana Lúcia Baggio, coordenadora da seção de IST/aids da SES.
Qual a diferença entre HIV e aids?
HIV é o vírus, aids é a síndrome marcada pela baixa contagem de células de defesa, o que deixa o organismo aberta a infecções de agentes intrusos. Hoje, quem tem HIV e faz tratamento deixa a carga viral indetectável – ou seja, não tem aids nem oferece riscos de transmitir o vírus a outras pessoas. Autoridades públicas inclusive orientam que pessoas com carga viral indetectável em relacionamento estável exclusivo não precisam usar preservativo. Quem tem HIV e a carga viral indetectável vive uma vida normal e quase tão saudável quanto uma pessoa soronegativa.
Como funciona o truvada?
A droga bloqueia a ação da transcriptase reversa do HIV, uma enzima necessária para que o vírus se multiplique no organismo. Quando o invasor constrói uma cadeia de DNA para se reproduzir, o truvada impede esse processo e torna a cadeia defeituosa. Na prática, o vírus não se divide. O efeito leva sete dias para proteger quem pratica sexo anal e 20 dias para sexo vaginal. Outras DSTs não são afetadas pela medicação. Há, ainda, outras medicações que estão sendo avaliadas para serem oferecidas como PrEP: injeções bimestrais e géis a serem aplicados na vagina.