O neurologista Geraldo Rizzo, especialista em medicina do sono, observa que qualquer pessoa que tenha um problema recorrente acaba por procurar um médico. Pode ser uma dor de cabeça uma vez por semana, por exemplo. Mas há uma grande exceção: a insônia. A cada noite, milhões e milhões de brasileiros rolam de um lado para outro na cama, sem conseguir dormir. Uma pesquisa realizada em 2012 pelo Instituto de Pesquisa e Orientação da Mente mostrou que 69% avaliavam o próprio sono como ruim e insatisfatório. Apesar disso, raros são os que comparecem a um consultório para tratar do problema.
A atitude é reveladora. Mostra o desprestígio do sono em uma era de superexcitação, tarefas múltiplas e tentadoras telas iluminadas, que colaboram para uma cultura que não só despreza as horas desperdiçadas com repouso, mas favorece que elas sejam miseráveis. Trata-se de uma civilização da insônia.
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– Sempre existiu insônia, mas em nossa época a prevalência tem aumentado muito. As pessoas não valorizam o sono, que é tão importante. A gente vê isso todos os dias. O indivíduo dorme se sobrar tempo. Acorda cedo para fazer atividade física, porque não tem outro horário, e depois dorme tarde porque tem de ver o jornal das 22h, tem de checar os e-mails, tem de isso e tem de aquilo. Ele faz tudo o que tem de fazer. Mas nunca pensa que tem de dormir sete ou oito horas. Ninguém dá bola para o sono. E aí, se não está dormindo, liga para ti: "Tu não conheces um remedinho bom para dormir?" – afirma Rizzo.
Exaustos e mal-humorados
Essa cultura é prejudicial porque incorpora uma multiplicidade de hábitos que contribuem para dificultar o sono. O culto à boa forma, por exemplo, disseminou academias de ginástica que funcionam até altas horas da noite – enquanto os especialistas recomendam que não se faça exercício no fim do dia. Da mesma forma, em tempos de streaming e redes sociais, virou um hábito noturno arraigado permanecer até tarde diante de tablets e computadores, aparelhos que emitem uma luz azul responsável por inibir a melatonina, o hormônio que põe o corpo para adormecer. Nas cidades, esse coquetel ainda tem como ingredientes nocivos a iluminação feérica e os ruídos sem pausa. Some-se a esse quadro um cenário de crise econômica, com hordas preocupadas com desemprego e dificuldades financeiras, e pronto: estão dadas as condições para a disseminação de uma epidemia de insônia.
As consequências de dormir pouco ou mal são o aspecto mais preocupante do fenômeno. Provavelmente, o indivíduo vai se sentir exausto e mal-humorado no dia seguinte. Também terá um rendimento pior na escola ou no trabalho. Cansaço, sonolência e queda de rendimento são efeitos relatados por 82% dos entrevistados no estudo do Instituto de Pesquisa e Orientação da Mente. Mas existem também desdobramentos mais insidiosos. Diferentes pesquisas indicam que o sono e o cansaço estariam por trás de 30% a 60% dos acidentes de trânsito. A insônia ainda é associada a desregulações do organismo e a quedas de imunidade que, no transcorrer do tempo, aumentam a predisposição a uma série de doenças, além de colaborar para o ganho de peso.
Apesar de todos esses alertas, nem sempre dormir menos do que as sete ou oito horas recomendadas será um problema. O especialista em medicina do sono Denis Martinez afirma que há pessoas que dormem pouco e não sofrem com isso. Segundo ele, estudos mostram que essas pessoas são, inclusive, sujeitas a menos problemas de saúde, na comparação com quem dorme além das horas recomendáveis.
– O principal fator de diagnóstico de insônia é a pessoa dizer: "No dia seguinte não consigo funcionar, chego ao trabalho e fico tomando café, fico bocejando, durmo na frente do computador, não consigo digitar nada". Também há os que se tornam fumantes, porque o cigarro acorda. Mas, se no dia seguinte, a pessoa acorda 100%, sem nenhuma queixa, ela está normal. Pode até ser uma vantagem – tranquiliza.
Infância mal dormida
Se há algo que tira o sono dos especialistas em sono, metaforicamente falando, é a situação das crianças. Hoje, de 10% a 15% delas sofrem de insônia.
O que assusta é um amplo e irrestrito desregramento no que diz respeito a dormir. A ideia de mandar os pequenos para a cama às 21h virou prática perdida em um passado remoto. Hoje, as crianças – e também os adolescentes –, deitam em horas tardias, em geral depois de se submeter a altas doses de um poderoso veneno antisono: tablets e computadores.
A infância e a adolescência representam os períodos da vida em que mais horas de sono são necessárias.
O problema não são apenas as consequências imediatas, como o mau rendimento escolar e o comprometimento do processo de crescimento.
– Isso é muito, muito sério, porque vai gerar consequências graves no futuro. Quando essas crianças chegarem à fase adulta, terão muito problema de sono, de crise metabólica, de obesidade, por conta desse mau hábito, dessa provação crônica de sono. A infância é o momento de aprender a dormir, e isso não está acontecendo. Os hábitos saudáveis não estão sendo desenvolvidos – observa a neurologista Andrea Bacelar.
A especialista enxerga nas redes sociais um grande perigo. Hoje, a qualquer hora, o adolescente encontra seu grupo online, o que o motiva a permanecer conectado até tarde. Por causa dessa tendência, muitas escolas dos Estados Unidos atrasaram o início das aulas – se não podem fazer os alunos dormir mais cedo, pelo menos conseguem propiciar que se levantam mais tarde, colhendo uma melhora no rendimento.
O neurologista Geraldo Rizzo afirma que se trata de um problema de falta de estabelecimento de limites.
– Hoje os pais trabalham e se culpam, então querem brincar com o filho à noite. Deixam que fiquem acordados até tarde. Não ensinam às crianças que há horário para dormir, que elas precisam se preparar, que não podem ir para a cama com o iPad – observa.