É difícil entender o que leva alguns a considerar que nossa vida deva ser sempre um modelo interessante e original, quando, na verdade, vivemos sob o tacão do passado com raras oportunidades de sermos de fato criativos. E, para quem valoriza sossego, é melhor que seja assim, pois qualquer sinalização de novidade já provoca uma compreensível reação, às vezes francamente destemperada, dos que seguem a cartilha relaxante da mediocridade e não toleram comparações pretensamente humilhantes.
Então, se assumimos que somos meros copiadores dos modelos disponíveis, sem arroubos de genialidade desgastante, é importante que atentemos para os exemplos que passamos aos nossos filhos que, por afeto, proximidade e descendência, são os nossos plagiadores naturais e instintivos.
Pode ser que o modelo de afeto que dispensas aos teus pais não seja suficiente para sensibilizar teus filhos nos cuidados desvelados dos avós, mas não tenha dúvida de que esse modelo será ressuscitado no futuro quando tocar a eles decidirem que apreço merecerás na velhice. E não há nada de espetacular neste comportamento. É só a roda da vida que também não se preocupa em ser original.
Fiquei com pena quando visitei a dona Carolina, com 82 anos, boa saúde, alojada num cubículo improvisado numa extensão da garagem, com um ventilador pequeno e insuficiente no canto da parede, uma TV de tubo com imagem e chuvisco, e uma amostra escassa de céu espremida entre muro alto e um varal de roupas ao vento. Na estante, uma Bíblia de capa de couro marrom, Contos Fluminenses, de Machado de Assis, um livro de palavras cruzadas sem capa e uma cestinha com incontáveis prendedores de cabelo. De plástico barato. A nora que pedira a consulta, advertira que a dita alegava uma dor no tórax, mas que não levava muita fé nessa queixa porque ela tinha um raio-x de tórax do ano anterior que fora normal e, além disso, já não andava mais dizendo coisa com coisa. "De qualquer maneira, é melhor ter certeza que não tenha nada grave, ainda que estejamos preparados. Porque, nesta idade... o que esperar? É a roda da vida e ninguém vive para sempre, não é, doutor?". Pois é.
O exame físico era normal e ela nem lembrava de queixa nenhuma, mas queria mesmo era conversar, e como conversamos. Com uma memória prodigiosa e um senso de humor apurado, foi uma das entrevistas para não esquecer. Com espírito leve e debochado, não guardava nenhuma mágoa e só lamentava que todas as suas amigas preferidas já tivessem morrido e da pouca paciência que tinha de conquistar novas entre essas velhas estranhas que gostavam de Big Brother. Se pudesse fazer um pedido, seria o de trocar a TV velha sem imagem por um rádio. Se era para curtir só o som, que fosse sem o maldito chiado. Mas se prometera que esta seria uma negociação para o próximo Natal. Se houvesse.
Quando saí, a nora mais velha quis saber o que achara da velha insuportável e ficou visivelmente chateada quando confessei que me apaixonara pela vózinha doce e bem-humorada.
E descarregou a irritação no filhote de uns 12 anos que brincava na terra, no jardim: "Carlos Eduardo, já para dentro! Não espere eu te pegar pelas orelhas, entendido?".
"Não enche, tá?" foi a resposta. Bati o portão convencido de que aquela roda estava começando a girar. À distância, até fiquei com a impressão que ouvira um rangido.