*J.J. Camargo é cirurgião torácico, chefe do Setor de Transplantes da Santa Casa e não dispensa uma boa conversa
O conhecimento sempre despertou curiosidade e isso, por si só, já explica a euforia que toma conta das mentes inquietas quando se aproxima a oportunidade de interagir com inteligências privilegiadas.
Com convidados famosos as descobertas encantam, mas raramente surpreendem, porque o prestígio intelectual da celebridade, em geral, antecede ao que ele vai dizer. No máximo poderemos admitir, com algum amuo, que esperávamos mais.
Saí de uma conferencia sobre o destino da medicina de alta tecnologia, num congresso em Minneapolis, com a sensação de ter convivido com um cérebro brilhante, e as suas frases finais ainda estavam reverberando na cabeça quando pousei em Buenos Aires, para participar, em sequência, de um simpósio de oncologia.
Quase meia-noite, comprei o tíquete do táxi até o centro da cidade e fui comunicado pela vendedora que o motorista que me levaria seria aquele velhinho simpático, com uma boina campeira, apoiado no balcão. A cara enrugada, com um sorriso brejeiro, me conquistou.
Quando anunciei que gostaria de tomar um café antes de partir e o convidei para tomarmos um café juntos, nos conquistamos.
No caminho começaram as perguntas: "Onde vives?" "Em Porto Alegre." "Em que trabalhas?" "Sou cirurgião" "Cirurgião de que?" "Cirurgião de tórax" "Cirurgião de tórax, opera o quê?"
Ao terminar de explicar que operava adultos e crianças, doenças inflamatórias, mas também muitos casos de câncer e que entre minhas paixões estava o transplante de pulmão, ele se encantou, e começou a discorrer sobre a sua ideia do homem como um ser bioenergético que come para acumular energia e depois trabalha para gastá-la, e outra vez come para recomeçar.
Nesta altura da conversa chegamos ao pedágio, e diante daquela fila de carros, ele apontou: "Nós somos como eles, só que com inteligência". Não resisti ao impulso debochado e acrescentei: "E alguns de nós, nem tanto!"
Ele sorriu e disse com a naturalidade de quem acreditava naquilo há muito tempo: "E o sr., meu doutor, é um homem educado e culto. Porque os broncos podem ser violentos, agressivos e raivosos, mas nunca conseguem ser cruéis, porque esta é uma exclusividade das pessoas educadas".
Meu comentário pretendia apenas ser bem-humorado, mas impossível negar que havia alguma maldade nele. Lembrei de Oscar Wilde, que escreveu: "As pessoas educadas nunca magoam as outras pessoas, sem querer!"
No resto do trajeto, me deliciei ouvindo-o falar de um poeta desconhecido para mim, Enrique Banchs, e depois declamar um poesia chamada El Tigre, em que esse autor descreve toda a beleza ondulante, a força e a ferocidade do animal e, inesperadamente, conclui: "Así és mi ódio". De arrepiar.
Nunca o aeroporto de Ezeiza me pareceu tão perto, e quando nos abraçamos na despedida, já éramos amigos de infância.
Com um cartão na mão, ainda recebi um último conselho: "Prefira os taxistas boêmios. O convívio com a lua enternece as pessoas".
Subi convencido que a sabedoria pode estar em qualquer lugar. O problema é que sempre a buscamos na cabeça e muitas vezes ela está só no coração.
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Coluna Palavra de médico
J.J. Camargo: A sabedoria mora numa pensão
O problema é que sempre buscamos a sabedoria na cabeça, e muitas vezes ela está só no coração
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