Os vizinhos não se conhecem mais. O trânsito está caótico. Os alimentos vêm de longe. O intenso e acelerado processo de urbanização pelo qual a humanidade tem passado não mudou apenas a paisagem das cidades. Mudou, essencialmente, o estilo de vida das pessoas.
Responsável por gerar isolamento e solidão, a competição que torna os centros urbanos mais violentos está sendo combatida por um movimento mundial em prol de cidades mais "humanas". Parece fácil, mas uma mudança como essa depende de muita vontade política.
Metrópoles como Amsterdã, Barcelona, Copenhagen, Curitiba, Londres, Nova York, San Francisco e Paris são referências deste movimento. Em comum, todas são dotadas de parques e áreas de convivência, ciclovias, boas calçadas, transporte público integrado e de qualidade e uma sensação de bem-estar social que extrapola a presença da polícia na rua.
Não há receita pronta para chegar lá. Mas alguns passos estudados por gente como o diretor-presidente da rede Embarq Brasil, Luis Antonio Lindau, ajudam a encurtar o caminho.
Segundo Lindau, a formatação de cidades mais humanas passa pela promoção de áreas de convívio, pois a própria ocupação dos espaços públicos traz mais segurança. O segundo ponto seria restringir o uso do carro, pois deixam os sujeitos isolados e blindados de sua conexão com a cidade.
O desenvolvimento voltado para as pessoas é caminho sem volta para as grandes cidades. Lindau explica que atrair bons negócios, boas empresas e boas cabeças para gerar riqueza é um dos motivos pelos quais o cenário está em transformação.
No livro New City Life, os urbanistas Jan Gehl, Lars Gemzoe, Sia Karnaes e Britt Sternhagen Sondergaard estabelecem 12 critérios para determinar como seria o espaço público ideal. Lá estão pontos como a prioridade para os pedestres e a preservação de espaços onde os cidadãos possam caminhar, sentar, conversar e simplesmente observar a cidade. Parece simples, não?
Mas não é. Quando se fala em melhores condições urbanas, um dos primeiros temas que surgem - e que, inclusive, vem sendo alvo preferencial dos protestos no Brasil - é o transporte público.
Para o urbanista e ex-prefeito de Curitiba Jaime Lerner, a solução seria "metronizar" os ônibus, investindo em sistemas como os BRTs integrados aos demais modais. Nesse contexto, a disputa entre carros, ônibus, motos e bicicletas é tão grande que o último a ser lembrado é o pedestre.
Acostumado a conviver com essa exclusão, o artista espanhol Gonzalo Durán, radicado em Porto Alegre desde 2007, diz que está cansado de ser ignorado como parte do trânsito. Ele defende a ideia de que as leis priorizem o pedestre, mas observa que não se desenvolvem políticas públicas para que essa prioridade seja efetiva.
- As inaugurações quase nunca são de passarelas, sinaleiras de pedestres ou faixas de segurança. A questão é sempre fazer caber mais carros nas ruas, mesmo cortando árvores centenárias - afirma.
Calçadas amplas e preservadas, academias e piscinas públicas, inclusão dos cadeirantes e idosos, valorização do comércio de bairro e informação nas paradas de ônibus são alguns exemplos que Gonzalo traz de Barcelona e que gostaria de ver na cidade que escolheu para viver.
Esforço para mudar o cenário
Se hoje as capitais estão infladas, imagine em 2030, quando mais de 60% da população mundial (cerca de 5 bilhões de pessoas) deverão morar em áreas urbanas. Por isso, grupos organizados e pessoas têm atuado para recuperar a camaradagem entre a vizinhança. O objetivo é restaurar a proximidade perdida, reconstruir novas formas de afeto e reencontrar-se com a própria cidade.
É o que faz a pintora suíça Mona Caron, que mora na Califórnia (EUA) e esteve em Porto Alegre em fevereiro, para o 2º Fórum Mundial das Bicicletas. Ela colabora para diminuir o tom cinzento das cidades pintando enormes murais em espaços públicos.
A arte, aliás, costuma ser boa estratégia para atrair e unir as pessoas. Um concerto ao ar livre, um domingo de sol e um bom chimarrão é a tríade perfeita para levar o gaúcho aos parques, por exemplo. Quando as apresentações da Orquestra Sinfônica de Porto Alegre ocorrem a céu aberto, a receptividade costuma ser imensa, diz o diretor artístico da Ospa, Thiago Flores. O último concerto na Redenção, no final de abril, reuniu cerca de 20 mil pessoas.
Mais tempo para os pedestres
Eleito vereador de Porto Alegre com a bandeira da mobilidade em duas rodas, Marcelo Sgarbossa (PT-RS) diz que o crescimento urbano atrapalha as relações humanas. Autor de projeto Cidades Mais Humanas, que promove causas como o respeito à distância de 1,5 metro entre bicicletas e automóveis, a mudança do tempo de espera na sinaleira de pedestres para 30 segundos, ele defende até a redução do limite de velocidade para carros, motos, ônibus e caminhões. A intenção, diz, é fazer as pessoas curtirem mais a viagem:
- A redução da velocidade ajudaria as pessoas a observarem melhor a cidade.
Entrevista
Consultor da ONU para assuntos de urbanismo, o arquiteto curitibano Jaime Lerner é um dos responsáveis pelo projeto de revitalização do cais de Porto Alegre e da orla do Guaíba. Ex-prefeito de Curitiba, foi na sua gestão que o local ganhou o caráter sustentável, virando referência quando se fala em cidades mais humanas. Nesta entrevista, Lerner elogia a relação dos porto-alegrenses com sua cidade.
Vida - Como Porto Alegre pode se tornar uma cidade mais humana?
Jaime Lerner - Além das prioridades naturais, que deveriam ser educação, saúde, segurança, há três pontos fundamentais para garantir qualidade de vida para os moradores de qualquer cidade: mobilidade, sustentabilidade e sociodiversidade (coexistência). A mobilidade deve ser pensada com a cidade, não dá mais para pensar moradia, trabalho e lazer de forma solta. Você não pode morar em um lugar e trabalhar a dezenas de quilômetros dele. Na questão da sustentabilidade, 75% das emissões estão nas cidades, e a maior parte vem do carro. Portanto, deve-se usar menos o carro e morar perto do trabalho. Em relação à coexistência: se há mais mistura de renda e funções, você tem colaboração na vizinhança, um prestando serviço para o outro, há mais trocas e mais relação de parceria.
Vida - Em que o Brasil precisa avançar?
Lerner - Na mobilidade, saindo desse falso dilema se o melhor é carro ou metrô. A solução não é nenhum dos dois. Temos que entender que hoje 60% a 80% das pessoas se deslocam na superfície. É na superfície que podemos avançar muito, transformando o ônibus em metrô. É possível com canaletas exclusivas, embarque rápido e frequência. As pessoas não podem esperar mais do que um ou dois minutos pelo ônibus. Teria que melhorar a operação, hoje muito falha. Esperamos 20 anos por meia linha de metrô, enquanto em três anos pode-se fazer a rede expressa com metade do custo. O movimento das ruas indicou que não é só a tarifa o problema, mas a qualidade dos transportes. Temos tecnologia, know-how, o que falta é ação rápida do governo.
Vida - E como Porto Alegre está em relação às demais cidades do mundo?
Lerner - Qualidade de vida é identidade. Nesse sentido, o porto-alegrense tem uma identidade muito forte com sua cidade. Isso é um caminho importante. Quando você assume a sua identidade e respeita a identidade alheia, acontece a solidariedade.
Vida - O senhor é responsável por dois projetos aqui (da orla e do cais do porto). O que mudará a partir deles?
Lerner - Eles vão garantir maior identidade para a população com a sua cidade. Os projetos foram entregues e daqui a pouco acredito que as obras entrem em concorrência. Mas deve mudar essa noção de que a cidade está de costas para o seu rio. O projeto foi feito para favorecer a convivência do cidadão com a natureza. Inovações em Porto Alegre
Cidades + humanas
Desenvolvimento voltado para pessoas é caminho sem volta para centros urbanos
Grandes espaços para convivência, calçadas amplas e preservadas, árvores e ciclovias são alguns atributos de uma cidade civilizada
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