Fatos, datas, fotos, pedras fundamentais. A história é feita disso, mas não somente. De nada valem os cenários, se não há personagens que os transformem, que os eternizem. Hoje, agora mesmo, há médicos escrevendo a história da medicina no Rio Grande do Sul, no Brasil, no mundo e, principalmente, na vida dos seus pacientes. Profissionais em consultórios, blocos cirúrgicos e por aí afora transformando a vida de um paciente assustado, de uma pessoa sofrida.
Na tentativa de reconhecer o poder que cada personagem tem de construir uma trajetória, Zero Hora foi ouvir os relatos de algumas vidas voltadas à saúde de muitos. São lembranças de gente pioneira, ousada e dedicada, que escolheu um caminho e assim entrou para a história.
Abraço e palavras de carinho
Nos corredores do Hospital Moinhos de Vento, ela desfila suavemente o hábito azul e os cabelinhos brancos. Os pacientes e seus familiares a chamam, e a irmã Ires Spier, 74 anos, vai confortá-los, conversar e rezar com eles. Mas não são somente os enfermos que requerem a presença da religiosa que, há 45 anos, trabalha no local. Nos corredores, há sempre um médico pronto para abraçá-la, confidenciar uma angústia ou pedir um conselho. Muitos profissionais encontram na sabedoria da irmã Ires as respostas para os questionamentos que a literatura e a prática médica ainda não conseguiram responder por completo.
A vida religiosa sempre foi o sonho de Ires, que nasceu em Chapecó e lá mesmo entrou para a Igreja Evangélica Luterana, na qual fez seus votos. Para estudar e tornar-se religiosa, mudou-se para São Leopoldo, cidade onde existe um convento de formação. Depois de fazer cursos na Alemanha, país onde fica a sede da congregação, abraçou a vida que desejou desde menina.
- Eu queria ser freira para cuidar dos doentes - diz irmã Ires.
Das muitas histórias que gosta de contar, as principais são sobre o trabalho como auxiliar de enfermagem no bloco cirúrgico, onde tempos atrás esterelizava seringas de vidro no fervedor e afiava agulhas de metal para medicar os pacientes. E já engata mais uma prosa sobre a aposentadoria, sempre postergada. Mas o assunto para. E lá vai irmã Ires cuidar de todos, mais uma vez.
- Venham ver, nasceu mais um bebê! - emociona-se ela.
Médico do coração
Ele ainda almeja ser o primeiro em outros momentos históricos da medicina. Não bastasse ter feito o primeiro transplante cardíaco do Rio Grande do Sul, em 1984, marcando a nova era de transplantes no país, o cirurgião cardíaco Ivo Nesralla ainda tem sede de pioneirismo.
- Quero implantar o coração de animais em humanos, o primeiro xenotransplante do país - diz Nesralla.
Aos 74 anos e se recuperando de uma fratura, o médico já planeja o retorno à cirurgia nos próximos dias. Não pode ficar longe de suas paixões: os pacientes, a medicina e a cardiologia. Para ele, o melhor de ser médico é ver um paciente se recuperando. A voz fica embargada ao revelar que nada pode ser tão gratificante como ver um transplantado levando uma vida normal. E avisa aos que pensam que medicina é sinônimo de dinheiro:
- É claro que temos que ganhar bem para viver, mas nosso objetivo final tem que ser a saúde das pessoas. Nada pode ficar entre um médico e a cura do seu paciente.
Depois de contar mais alguns de seus pioneirismos, como a colocação do primeiro coração elétrico implantável no Brasil, em 1999, e o primeiro implante de marcapasso com um robô AESOP 3000 do mundo, em 2001, Nesralla não pensa em parar. Quer usar células-tronco e outros materiais genéticos para recuperar o coração de quem sofreu isquemias, por exemplo. E quer, quer, quer. Quer ser médico por mais tempo, quer operar mais, atender mais. Quer ver seus pacientes recuperados e viver o melhor da medicina, mais e mais.
Dedicação à saúde pública
"Sou um estagiário aqui, estou aprendendo tudo com a equipe do museu. Ainda bem que eles têm paciência para ensinar."
Não, a fala não é de um estudante de medicina recém chegado a um bloco cirúrgico ou a um posto de saúde. O estagiário em questão é o médico, ex-deputado estadual e federal e ex-secretário da Saúde Germano Bonow, 70 anos, que estreou uma nova função há um ano. Por sua paixão pela antiga trajetória dos médicos e das práticas de saúde no Rio Grande do Sul, tornou-se diretor do Museu de História da Medicina (Muhm). Para quem já se reinventou sucessivas vezes, o cargo abriu um mundo novo.
Ao comentar os estudos que fez sobre métodos aplicados em saúde pública no Estado, ele lembra que foram as informações históricas que o ajudaram a tomar decisões, como o combate à desidratação infantil em Porto Alegre no final da década de 1970.
Recém formado, Bonow já sabia que queria dedicar-se à saúde pública. Tomou então a decisão mais difícil e, segundo ele, mais importante. Procurou um programa internacional de assistência e mudou-se para a fronteira do Brasil com o Peru, no coração da Amazônia. Lá ficou por dois intensos anos, onde curou muitas pessoas e aprendeu muito do que sabe sobre saúde. Neste tempo, começou a escrever sua história na medicina, que se desdobra em importantes momentos da política gaúcha e brasileira. História que, agora, ele quer contar no acervo do Museu.
Dia histórico para ele e ela
Naquele dia, como nos outros, Liduína, a faxineira do bloco cirúrgico da Santa Casa, deixou o trabalho às 18h. Fez o que tinha que fazer em casa, tomou banho, passou perfume e voltou para o hospital. Dispensou a plantonista da limpeza, pegou balde, vassoura, álcool e pano e foi para a porta do bloco. Ao vê-la por ali àquela hora da noite, médicos e enfermeiros perguntaram, curiosos, o que afinal ela fazia fora do horário de trabalho. Ao que ela respondeu:
- Sou faxineira aqui há 20 anos. Não vou perder isso. Quem vai limpar o bloco cirúrgico depois do primeiro transplante de pulmão da América Latina sou eu!
A comovente história é narrada com toda a emoção pelo cirurgião torácico José Camargo, diretor do Centro de Transplantes da Santa Casa de Porto Alegre e chefe da equipe responsável pelo primeiro transplante de pulmão da América Latina, realizado em maio de 1989. O dia que mudou a história da medicina brasileira também transformou a vida do homem que se diz dos menos corajosos.
- Eu estava apavorado antes do transplante. Afinal, nunca tinha sido feito aqui, ninguém tinha experiência, muita coisa podia dar errado. Mas havíamos nos qualificado, tínhamos um paciente e um doador. Não dava para recuar. E tudo aconteceu - relembra Camargo.
Depois disso, a equipe de transplantes da Santa Casa protagonizou o primeiro transplante de pulmão com doadores vivos fora dos Estados Unidos, em setembro de 1999. O receptor era um menino de 12 anos, de Curitiba (PR).