Uma estatística assustadora coloca Porto Alegre no epicentro de uma doença temida e que, para muitos, ainda pode significar uma sentença de morte. Há pelo menos uma década, a Aids tomou proporções gigantescas em solo gaúcho: é na Capital que a taxa de incidência chega a 99,8 casos a cada 100 mil habitantes - simplificando, um em cada mil porto-alegrenses tem a doença, com sintomas. Os dados, de 2010, confirmam uma escalada no número de casos, numa epidemia sem trégua.
Em nível nacional, o Rio Grande do Sul também lidera o ranking. São 37,6 casos a cada 100 mil habitantes. Rondônia (35,7) e Amazonas (30,9) estão atrás dos gaúchos, respectivamente em segundo e terceiro lugar na lista.
Segundo Eduardo Sprintz, infectologista do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, a epidemia é caracterizada quando há um aumento do número de casos em um curto espaço de tempo.
- Já se trata, há algum tempo, de uma epidemia: em comparação com o resto do país, os números estão em um nível muito elevado - afirma Sprintz.
Quanto ao número de casos novos, Porto Alegre é a líder, com uma taxa de letalidade muito elevada. Na maior parte das vezes, as mortes ocorrem nas classes menos privilegiadas, em função das complicações que surgem devido à baixa imunidade. Partenon, Rubem Berta e Restinga, por exemplo, têm índices alarmantes. Mas não se trata de uma chaga da periferia: no Moinhos de Vento e em Petrópolis, há vários casos.
- Teoricamente, o HIV não mata, e sim as comorbidades. Com a imunidade baixa, as infecções oportunistas evoluem para quadros graves - afirma o infectologista.
A barreira do preconceito
Rubens Rafo Pinto, coordenador do Fórum de ONGs da Aids no Estado - que agrega 48 instituições - afirma que as pessoas ainda vivem com muito preconceito, mesmo que atualmente seja de forma mais velada.
- Há discriminação para conseguir emprego. Embora seja ilegal, ainda há empresários que exigem o teste - afirma.
Segundo especialistas, o fato de a pessoa conviver com HIV/Aids não representa que ela seja incapaz de exercer qualquer tipo de profissão: o indicado é evitar o contato com as secreções contaminadas. O problema é que, muitas vezes, as pessoas infectadas descobrem o fato muito tarde, o que acarreta a não recuperação e leva ao óbito.
Entre os efeitos colaterais, estão a distrofia muscular, a alteração da glicose e a elevação do colesterol.
- Dá para levar uma vida normal. Só tem que ter atenção no horário dos remédios - afirma Pinto.
O Sistema Único de Saúde (SUS) fornece o tratamento, porém, segundo o coordenador, só isso não basta. Ele critica o descaso do poder público em relação às políticas de controle da doença.
- Na última década, a Aids deixou de receber prioridade de recursos na área da saúde em Porto Alegre. Estão recuperando isso, mas o número de pessoas atendendo diminuiu, o número de leitos para internação é o mesmo e, enquanto isso, a quantidade de pacientes só aumentou - afirma.
Marcelo Bosio, secretário da Saúde de Porto Alegre, afirma que, apesar de lentos, os avanços estão ocorrendo:
- A descentralização do tratamento entre centros de especialização e atenção primária está ajudando a organizar o atendimento.
As ações de prevenção e organização também estão bem nutridas por recursos, garante o secretário. O diagnóstico precoce, segundo Bosio, é um dos focos da secretaria, já que há 49 mais chances de óbito quando a enfermidade é descoberta tardiamente.
- Viemos de trás para frente, estamos olhando para os óbitos, para os casos, e aí verificamos como poderemos contornar - diz o secretário.
Por que a Capital lidera o ranking
O motivo pelo qual Porto Alegre lidera este triste ranking não é um só: são vários. Um deles é que na Capital é feito um dos melhores controles epidemiológicos - ou seja, os casos são bem registrados.
Outros motivos são culturais, políticos e religiosos. Especialistas afirmam que nem sempre se investiu tanto em prevenção - só em 2011, foram aplicados pelo município (com verbas do Ministério da Saúde) mais de R$ 1 milhão em campanhas de prevenção. Além disso, há a questão comportamental:
- Os gaúchos não fazem o exame. Acham que não serão atingidos. A questão religiosa também faz com que muitos não usem camisinha. Além disso, o machismo, o uso de drogas injetáveis e o sexo desprotegido têm forte influência - afirma o infectologista Carlos Kvitko.
Efeitos colaterais graves
Aos 63 anos, a advogada Beatriz Pacheco fala que lutar contra a doença é enfrentar muitos tabus e preconceitos. Bem-sucedida e aposentada como assessora do Tribunal de Justiça, a gaúcha estava casada havia um ano e meio com o terceiro marido quando, há mais de uma década, descobriu que tinha Aids. Dois deles morreram, mas ela seguiu firme.
- Tomava quatro banhos por dia. Me sentia suja - lembra ela, que foi contaminada pelo marido, que havia feito transfusão de sangue.
A advogada faz uma crítica ao governo que, segundo ela, "pede para que a gente não fale sobre os efeitos colaterais da doença, com medo de que as pessoas não queiram passar pelo tratamento":
- Há efeitos colaterais graves, como câncer, problemas neurológicos e cardiológicos. Eu estou com uma memória mínima, parecida com os doentes de Alzheimer - ressalta.
Jovens e idosos na mira
Kely (nome fictício) é jovem, bonita e adora festas. Quando sai com as amigas, aposta na produção, no charme e em algumas doses de álcool para curtir a noite de forma mais intensa. Universitária e porto-alegrense, tem uma carreira promissora pela frente. Invariavelmente, chega solteira e sai da festa acompanhada. Após a festa, o destino é quase sempre o mesmo: o motel. Na noite em que completou 25 anos, fez como muitos universitários: saiu com os amigos para comemorar. Tomou todas as taças de espumante que lhe cruzaram a frente, reuniu a turma e dançou até doerem os quadris.Beijou o rapaz mais interessante da festa, ganhou abraços da turma.
Perto das 5h, quando já tinha a maquiagem borrada e os cabelos molhados pele suor, Kely saiu da festa para viver momentos mais íntimos com o escolhido da vez. Entre quatro paredes, tudo o que desejava era curtir os prazeres da juventude. Com a libido e a consciência liberadas pela bebida, a jovem entregou-se por completo nos braços bem delineados do moreno alto, sem imaginar que isso pudesse lhe fazer algum mal. A noite terminou, foi um para cada lado e a vida seguiu.
Anos mais tarde, Kely descobriu que estava errada. Diante de uma resposta positiva para o teste HIV, repensou o comportamento na juventude e ficou perplexa ao recordar as inúmeras vezes em que ignorou o preservativo. Não sabia exatamente a quem recorrer, já que havia mantido relações sexuais com vários parceiros de forma desprotegida. A sua única certeza é que não adiantaria buscar culpados. Tudo o que fez foi por vontade própria.
Casos como o de Kely são mais comuns a cada ano que passa na capital gaúcha. Porto Alegre assumiu o ranking entre as cidades que mais registram casos da doença, com taxa de incidência anual de 99,8 casos por 100 mil habitantes (dados de 2010). Ao contrário do que se pensava há 20 anos, a Aids não é mais doença exclusiva de usuários de drogas, homossexuais e pessoas de comportamento promíscuo. Hoje, idosos, jovens de classe média-alta, médicos e advogados também integram a lista dos contaminados.
Para se ter uma ideia, nos últimos dois anos, em todo o país, o percentual de pessoas contaminadas entre 50 e 59 anos cresceu de 5,4% para 6,6% entre as mulheres e de 6% para 7% entre os homens.
Há uma forte resistência também entre a terceira idade, do uso da camisinha. A rejeição, segundo a enfermeira Isete Maria Estela, ocorre em função do receio da impotência:
- Muitos acham que os idosos não têm vida sexual ativa. Ao contrário: eles transam cada vez mais, com a ajuda de medicamentos. É a revolução da pílula azul para os homens e da hormonoterapia para as mulheres.
Segundo o infectologista Carlos Kvitko, não existe mais um perfil da doença, nem um grupo de risco. Existe apenas comportamento de risco.
O aumento alarmante do número de casos levou o município a buscar medidas preventivas mais eficazes. Além da distribuição média de 300 mil preservativos por mês, desde o ano passado, os testes rápidos foram adotados como estratégia para o diagnóstico da doença. De acordo com Isete, a medida permite ao paciente viver com qualidade:
- Queremos popularizar o teste para antecipar os diagnósticos.
Coordenador da área técnica de DST-Aids e Hepatites Virais da SMS, Gerson Barreto Winkler diz que a proposta é levar o exame aos locais públicos de grande circulação, para facilitar o acesso e potencializar as ações que são realizadas regularmente nos serviços de saúde.
A revolução do teste rápido
Sem exigir grande estrutura para sua realização, o teste rápido pode ser feito com apenas uma gota de sangue, é um processo confidencial e dura cerca de 15 minutos. A assistente social da secretaria municipal da saúde Lúcia Ramos Escobar explica que o teste ajuda na antecipação do diagnóstico. Saiba mais sobre o método, com explicações da especialista.
Muitas pessoas ainda ficam constrangidas de fazer?
O constrangimento diminuiu. Ficamos surpresos com a procura que houve em uma campanha itinerante, no Largo Glênio Peres, em junho. Foi impressionante ver tanta gente na fila. O assunto está sendo desmistificado e as pessoas estão mais informadas sobre tratamento da HIV.
Em quanto tempo sai o resultado?
Em 15 minutos. Essa é a grande diferença. Antes e depois do resultado, conversamos por mais alguns minutos, pois os testes rápidos são momentos de conscientização, em que aproveitamos para fazer a pessoa refletir sobre prevenção.
Há algum tipo de apoio para quando o resultado é positivo?
Sim, temos uma equipe de aconselhadores e executores do teste rápido. Independentemente da resposta, há o apoio, mas principalmente em situações emocionalmente mais importantes. Na hora do teste, já temos a agenda para marcar a consulta e encaminhar o paciente, em caso de resultado positivo.
E qual encaminhamento é dado ao paciente após o teste?
O serviço de atenção especializada dentro da Vila dos Comerciários e do IAPI. São os locais especializados que atendem a moradores de Porto Alegre, da Região Metropolitana e até mesmo do Interior.
O exame rápido é tão eficiente quanto exame de laboratório?
Poderia dizer que ele é mais eficiente, pois tem sensibilidade maior do que os exames de laboratório (como o popular Elisa). No laboratório os exames são de extrema sensibilidade, mas não têm tanta especificidade. Por isso muitas vezes é preciso fazer uma recoleta e ir para um confirmatório.
Entenda as diferenças
:: Falso positivo x falso negativo
Quando a pessoa faz o teste, são medidos os anticorpos. Porém, deve ser considerado o tempo da "janela imunológica", período de 30 a 90 dias após o momento do contágio. Às vezes, quando se faz o teste, não houve tempo suficiente para a formação dos anticorpos e se tem um falso negativo.
O caso do falso positivo ocorre porque, como o teste é muito sensível, às vezes perde um pouco a especificidade - ou seja, é detectado outro microrganismo que é confundido com o HIV. Gravidez, doenças autoimunes como o lúpus ou viroses podem dar uma reação cruzada.
Em ambos os casos, é preciso refazer o teste para obter o resultado definitivo.
:: HIV x Aids
HIV é o vírus da imunodeficiência humana. Ele se alimenta de células de defesa, que são aquelas que protegem o organismo das doenças. Com o passar do tempo, a pessoa infectada fica com menos células de defesa, o que deixa o corpo mais desprotegido. Demora um tempo para o vírus produzir estragos no organismo. A pessoa pode passar anos com a doença e não ter sintomas. Em geral, eles começam a aparecer de oito a 10 anos depois do vírus ser adquirido. Quando isso ocorre, aí a pessoa passa a ficar doente de Aids. Síndrome de imuno deficiência adquirida, a Aids é um conjunto de sinais e sintomas notada no organismo quando o indivíduo passa a contrair mais doenças que uma pessoa saudável.
:: Preveção x Tratamento
Inicialmente usado em populações que não tinham acesso aos laboratórios, o teste rápido de HIV já é usado nos serviços de saúde desde 2004. Por causa do alto índice de diagnóstico tardio, passou-se a adotar o teste em Porto Alegre como estratégia para fortalecer o diagnóstico e prevenir o alastramento da doença. Além do teste, o uso da camisinha é uma das melhores formas de prevenir, já que a maior forma de contágio é o sexo desprotegido. Se por um lado o tratamento faz com que baixe a quantidade de vírus, por outro, transar sem camisinha com outra pessoa contaminada pode aumentar a carga viral dos pacientes contaminados.
:: Sistema público x privado
No Brasil, todo cidadão tem direito ao acesso gratuito aos antirretrovirais, que são altamente confiáveis. O paciente deve tomar, em média, de três a seis comprimidos por dia, porém há esquemas que podem chegar a 10 comprimidos diários. No sistema privado, há a opção de ser apenas um remédio. A medicação é tomada de modo contínuo, exceto na gravidez, quando toma-se apenas para não passar para o filho, na 14ª semana até o momento do parto.
Em todos os sistemas - tanto no público quanto no privado -, a toxicidade dos medicamentos é a mesma e o paciente é acompanhado durante todo o tratamento, para medir seus índices de imunidade.
Onde fazer na Capital
Rápido
Centro de Saúde Santa Marta
Rua Capitão Montanha, nº 27 - 5º andar
De segunda a sexta-feira: das 9h às 11h
Telefones: 3289-2874 e 3228-2379
Convencional
Centros de Testagem e Aconselhamento (CTA) do Ambulatório de Dermatologia Sanitária (avenida João Pessoa,1327)
CTA Caio Fernando Abreu (avenida Bento Gonçalves, 3722 (também faz o teste rápido)
CTA Paulo Cesar Bonfim (rua Professor Manoel Lobato, 151), região Glória-Cruzeiro-Cristal