Diante dos casos de pacientes que receberam órgãos infectados pelo vírus HIV no Rio de Janeiro, profissionais da área de transplantes reforçam que o processo é composto por regras bastante rígidas.
Uma delas estabelece, por exemplo, que todos os doadores devem passar por exames para identificar a presença de doenças infecciosas antes da coleta dos órgãos. Por isso, o sistema é considerado “absolutamente seguro”.
Consultado pela reportagem de Zero Hora, o Ministério da Saúde garantiu que não havia sido registrada situação semelhante no Brasil. Rogério Caruso, médico regulador e coordenador da Central Estadual de Transplantes (CET) do Rio Grande do Sul, reforça que o Sistema Nacional de Transplantes (SNT) é um dos maiores e mais robustos do mundo, sendo internacionalmente reconhecido e acreditado por sua segurança.
— Existem regras bastante rígidas em relação à segurança e à biossegurança, principalmente na detecção, para impedir a possibilidade de transmissão de doenças infecciosas do doador para o receptor. Isso que aconteceu (no Rio de Janeiro) foi uma extrema exceção no sistema. É tudo feito com rigor de fiscalização e qualidade para que isso não aconteça — enfatiza.
As etapas do processo de doação começam antes dos órgãos serem coletados e distribuídos, explica Jorge Neumann, chefe do Laboratório de Imunologia de Transplantes da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre. A primeira delas é a constatação de morte encefálica dentro da Unidade de Terapia Intensiva (UTI) — é preciso que a comprovação seja feita duas vezes, com um intervalo de seis horas, com dois registros gráficos que atestem o óbito.
A avaliação dos órgãos é realizada somente após a autorização da família do paciente, com o apoio de especialistas de cada grupo de transplante. Neumann aponta que o processo inclui uma varredura de diversas doenças infecciosas, a partir de testes feitos de uma forma relativamente rápida:
— Simultaneamente, os times de transplante são contatados a respeito desse doador. E todo esse processo é documentado: o atestado de morte encefálica, a autorização familiar, todas as avaliações de cada um dos órgãos, o aceite ou recuso de um determinado órgão. Não posso dar o grupo sanguíneo desse doador de forma verbal, tenho que ter isso checado, escrito e assinado. Tudo isso é rigorosamente auditável.
Exames necessários
Conforme o Ministério da Saúde, os exames necessários para verificar se o doador ou o órgão possui problemas de saúde que impeçam a doação estão listados no Regulamento Técnico do SNT. O artigo 57 estabelece que todos os potenciais doadores falecidos de órgãos, tecidos, células ou partes do corpo devem passar pelos seguintes procedimentos:
- Avaliação de situações de risco acrescida de informações do histórico de antecedentes pessoais e exame clínico;
- Avaliação de fatores de risco por meio de resultados positivos de exames sorológicos de triagem para: a) doadores de córneas: HIV, HbsAg, AntiHBs, Anti-HBc total e Anti-HCV; e b) doadores de órgãos, outros tecidos, células ou partes do corpo: HIV, HTLV I e II, HbsAg, AntiHBs, Anti-HBc total e Anti- HCV, sífilis, e doença de Chagas.
O artigo aponta ainda que “é facultativa a realização de exames sorológicos para toxoplasmose, citomegalovírus e Epstein-Barr, devendo ser sua realização, ou não, regulamentada pela respectiva CNCDO (Central de Notificação Captação e Distribuição de Órgãos e Tecidos), e caso não sejam realizados, os órgãos e tecidos doados deverão ser acompanhados de amostra de sangue do doador que permita a pesquisa posterior, se necessária”. É necessário, contudo, o exame para detecção de covid-19.
No caso de doador com hepatite C ou doença de Chagas, o encaminhamento ou não do órgão é avaliado caso a caso, segundo o especialista da Santa Casa. Já os portadores de hepatite B, HIV e HTLV são desconsiderados como doadores.
— É um processo que envolve muitas etapas, todas elas absolutamente auditadas, e envolve um número absurdo de profissionais. Então, o processo de doação permanece absolutamente seguro. O Brasil tem uma longa história em transplante, disputamos com a China o segundo lugar no mundo em número de transplantes feitos. Temos uma história muito bonita e muito respeitada fora do país — salienta Neumann.
Escolha dos laboratórios
Em nota, o Ministério da Saúde também informou que a responsabilidade pela realização dos testes sorológicos é do estabelecimento onde o doador está internado, que utiliza um laboratório de referência para a testagem e emissão de laudos. Esses exames podem ser feitos por laboratórios públicos ou privados, “desde que cumpram todas as exigências sanitárias”.
Ainda conforme a pasta, os laboratórios são definidos pelos gestores locais de saúde (Estados e municípios) e estão sujeitos à fiscalização sanitária, por meio do Sistema Nacional de Vigilância Sanitária. Esses locais possuem registro no Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES) e são classificados como Unidade de Apoio ao Diagnóstico e Terapia (SADT). Ao todo, são mais de 30 mil estabelecimentos registrados.
— Cada Estado tem um ou mais laboratórios que prestam esse serviço de avaliação. Isso normalmente é descentralizado por uma questão de agilidade. Pode ser no hospital, em um laboratório público ou em laboratórios que prestam serviço para o Sistema Único de Saúde. Mas é obrigatório que seja feito. Existe como regra extrema seriedade nesse processo todo, confiamos muito e nunca se teve qualquer susto como esse que estamos vivendo agora nesses 60 anos em que se faz transplante no Brasil — destaca Neumann.
No Rio Grande do Sul, os exames sempre são feitos nos laboratórios dos hospitais onde está o doador, que têm liberação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e são constantemente fiscalizados, afirma Caruso. Caso a instituição de saúde não tenha a estrutura necessária para fazer o teste na velocidade necessária, as amostras são enviadas para Porto Alegre e, em geral, avaliadas pela Santa Casa.
— O Sistema Nacional de Transplantes exige os critérios de segurança, mas cada Central Estadual tem autonomia para gerir de que forma fará isso. No nosso caso, optamos por fazer sempre em hospitais, com laboratórios que são fiscalizados e conceituados. Procuramos sempre ter essa segurança — aponta o coordenador, acrescentando que a Central Estadual faz uma vistoria para verificar a capacidade das instalações e, posteriormente, realiza revisões das estruturas:
— Então, toda vez que uma equipe se credencia para realizar transplantes, recebe a nossa vistoria. E o laboratório que eles usam tem todas as certidões e liberações sanitárias. Ou seja, tem condições de realizar de forma adequada os exames.