A Câmara Municipal de Vereadores de Guaíba realizou uma audiência, na manhã deste sábado (24), para debater sobre o uso de cannabis para fins medicinais. A audiência foi convocada pela presidente da Comissão de Saúde, Meio Ambiente e Assistência Social, vereadora Carla Vargas (União Brasil), para permitir a participação popular na discussão do projeto de lei 023/2024, que propõe a criação do Programa Municipal de Uso de Cannabis para Fins Medicinais.
O programa tem como objetivo “adequar a temática da cannabis medicinal aos padrões e às referências internacionais, como Canadá, Estados Unidos e Israel, proporcionando maior acesso à saúde e atendimento adequado aos pacientes com epilepsia, transtorno do espectro autista, esclerose, doença de Alzheimer e fibromialgia, dentre outros, de forma a diminuir as consequências clínicas e sociais dessas patologias, assim como as consequências de políticas públicas desatualizadas quanto aos usos da cannabis”, informa o texto do projeto.
Na audiência, o vereador João Caldas (PDT) explicou que propôs o projeto por solicitação de famílias de pacientes. Caldas ressaltou a importância do debate e de ouvir especialistas acerca da necessidade do uso dos medicamentos que a planta pode produzir.
Médica que atua em medicina integrativa no Sistema Único de Saúde (SUS) em Porto Alegre e considerada referência em tratamento com cannabis, Alice Poltosi explicou que, atualmente, o que sustenta a aplicação da cannabis é a descoberta do sistema endocanabinoide — um sistema de receptores e neurotransmissores no corpo que consegue auxiliar na memória, aprendizagem, sono, liberação hormonal, resposta imune, percepção de dor, entre outros, devido à produção de endocanabinoides. O corpo humano produz neurotransmissores muito parecidos com os canabinoides presentes na cannabis — que podem se encaixar nesses receptores e atuar modulando o sistema endocanabinoide.
A ampla variedade de compostos da planta (são mais de 450 componentes) é uma das justificativas do porquê há uma gama variada de condições e doenças para as quais a cannabis pode ser uma ferramenta terapêutica, como câncer, dor crônica, doenças neurológicas, entre outras. O uso não deve ser indiscriminado, lembra a médica — mas, se bem acompanhado e prescrito, os efeitos colaterais são pequenos comparados aos dos medicamentos alopáticos.
Alice — que também faz uso do remédio, pois tem lúpus e retocolite ulcerativa — frisou ainda a importância de combater preconceitos e de tratar a saúde com ciência ao invés de “achismos”, já que a planta é fundamental para o bem-estar de muitas pessoas que não respondem a nenhum tratamento.
— A gente consegue muitas vezes desprescrever boa parte (dos medicamentos) e trocar por um remédio que traz uma qualidade de vida muito maior — apontou, alertando, entretanto, que a cannabis medicinal nem sempre será o principal remédio.
Primeira paciente autorizada a realizar plantio e extração caseiras dos medicamentos, Liane Pereira passou anos enfrentando dificuldades ao lado da filha, que tem crises de epilepsia desde o nascimento. A pequena teve de tomar remédios desde o primeiro mês de vida, passando a utilizar medicamentos fortes aos dois meses. Ela chegou a tomar cinco anticonvulsivos concomitantemente, mas continuava com muitas crises — mais de 60 por dia. A filha de Liane precisou utilizar cadeira de rodas, e passava mais tempo no hospital do que em casa. Depois de anos batalhando por medicamentos, os pais conseguiram plantas para cultivar em casa. A pequena iniciou o uso do óleo em setembro de 2018.
— Me emociono, neste momento, para dizer que em setembro de 2018 foi o primeiro mês em que a gente pode começar a respirar. Ela está ali, sem cadeira de rodas, sem sonda gástrica, sem a traqueo como a médica disse que ia ter. Eu uso muito a palavra maconha, porque a gente não usa nomes científicos das plantas. A maconha trouxe qualidade de vida para a nossa família — compartilhou.
A filha de Liane tem Dravet, um tipo de epilepsia de difícil controle, incapacitante, sem cura, com diminuição da expectativa de vida já na adolescência. Agora, a pequena está planejando sua festa de 15 anos. A luta da mãe é para que outras famílias não precisem passar pela mesma peregrinação. Liane também defende a necessidade de os pacientes compartilharem os resultados de seus tratamentos com a sociedade.
Como funciona no Brasil
A maior dificuldade está ainda na luta pelo acesso, como frisaram todos os participantes da audiência. Advogada de pacientes e de associações, Bettina Maciel lembrou as atuais vias de acesso aos medicamentos, a partir da prescrição de um médico: em uma farmácia tradicional, pagando altos valores; pela importação, pagando valores igualmente elevados; por via judicial, solicitando ao Estado, que também paga valores elevados; por cultivo autorizado judicialmente – e, em alguns casos, há quem coloque a própria liberdade em risco ao cultivar em segredo em casa, lembrou a advogada; e por meio de associações de pacientes, que, muitas vezes, têm autorização judicial para o cultivo. Bettina considera o movimento associativo um dos mais importantes para garantir saúde e acesso atualmente no Brasil.
Para a advogada, o mercado brasileiro é utilizado como sítio de concorrência desleal, já que o plantio da cannabis medicinal é permitido apenas com autorização judicial – e consegui-la não é tarefa fácil. Os problemas com o tratamento estão enraizados no fato de que se trata de um remédio derivado de uma planta proibida – mas que é fitoterápico como outros, defende Bettina. Para a advogada, não existe segurança até que haja a regulamentação efetiva, isto é, a legalização, que deve ser tratada “sem pruridos morais”, sustenta.
— Quem tem dor tem pressa, não produz, não vive, não ama — pontuou.
A médica Alice Poltosi ressaltou que as associações atuam na democratização do acesso, mas não são suficientes para suprir a demanda atual. Ela sustenta que o custo da medicação seria significativamente reduzido com a flexibilização do cultivo por associações e do cultivo individual, além das farmácias vivas do SUS. O cenário atual dificulta até mesmo o desenvolvimento de pesquisas, conforme os participantes da audiência.
Leonardo Rostirola, presidente da associação Pampa, de Guaíba, destacou que a deliberação política é fundamental para avanços na área. Ele ressaltou que diversas cidades vêm editando legislações próprias visando a concretização do acesso à saúde e a otimização dos processos, bem como a redução da onerosidade aos cofres públicos. Rostirola citou os casos de Porto Alegre e Santa Cruz do Sul, no RS; e, em outros Estados, Goiânia, São Paulo (SP), Campinas, Santos e o Estado de São Paulo SP. Em Mandaguari, no Paraná, pacientes autistas passaram a adotar uma carteira de identificação, de modo a evitar constrangimentos.
A Acuracan, maior associação do RS, por sua vez, compartilhou detalhes sobre o processo de produção e fornecimento dos medicamentos. A entidade consegue produzir diferentes formulações dos óleos para atender a demandas específicas dos pacientes. Hoje, a associação tem quase 6 mil pacientes, além de 18 colaboradores.
O deputado estadual Leonel Radde (PT), integrante da Frente Parlamentar em Defesa da Cannabis Terapêutica, também participou da audiência e frisou a importância de separar o uso terapêutico do uso adulto, destacando que o tema tem sido prejudicado pela pauta moral.