Em meio às repercussões sobre o Projeto de Lei (PL) 1904/24, que equipara o aborto após 22 semanas ao homicídio simples, informações falsas circulam nas redes sociais. Cercado de divergências e polarização, o tópico do aborto é frequente alvo de narrativas ideológicas e teorias conspiratórias.
Com isso, notícias falsas e alegações enganosas voltaram a repercutir, ampliando a desinformação sobre o assunto. A reportagem de Zero Hora reuniu, abaixo, as duas principais afirmações falsas que estão sendo disseminadas sobre o tema, e informações oficiais desmentindo.
1. Fetos seriam utilizados pela indústria de cosméticos
Nas últimas semanas, viralizou nas redes sociais um vídeo em que o deputado federal Sóstenes Cavalcante (PL-RJ) diz que fetos abortados são usados para fabricação de cosméticos. Autor do “PL do aborto”, como ficou conhecido, o parlamentar afirma, no vídeo, que o aborto tem relação com “empresas multimilionárias que utilizam fetos em produtos farmacêuticos”.
— Há uma indústria mundial liderada por um senhor chamado George Soros, um milionário americano que patrocina mundo afora o aborto, o assassinato de bebês indefesos. Sabe por quê? Porque eles vivem de empresas também que dependem do feto humano para fabricar cosméticos — afirma o deputado Sóstenes Cavalcante na gravação.
O vídeo foi divulgado no Instagram e no X, antigo Twitter. No entanto, não há qualquer comprovação disso, conforme a Associação Brasileira da Indústria de Higiene Pessoal, Perfumaria e Cosméticos (Abihpec), entidade que fiscaliza o setor. Consultada pela reportagem, a instituição enviou a seguinte nota:
A Associação Brasileira da Indústria de Higiene Pessoal, Perfumaria e Cosméticos (ABIHPEC) afirma categoricamente que as alegações feitas pelo deputado federal Sóstenes Cavalcante sobre o uso de fetos abortados na fabricação de produtos cosméticos não têm qualquer fundamento. A indústria de HPPC no Brasil segue rigorosos padrões éticos e legais, que são supervisionados por autoridades competentes e regulamentados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA).
Já a Anvisa informou, em resposta à reportagem, que “não possui em seu banco de dados denúncias relativas ao uso de fetos humanos em produtos cosméticos”. Conforme o órgão, desde 2021, seguindo a Resolução de Diretoria Colegiada 529, “células, tecidos e produtos de origem humana são proibidos em produtos cosméticos fabricados no Brasil ou importados”.
2. Aborto legal teria prazo de até 22 semanas de gestação
O PL 1904/24 determina uma idade gestacional limite para os casos legais de aborto previstos – 22 semanas, que são cinco meses completos. A proposta prevê aumentar a pena para as mulheres que abortarem após o tempo previsto. Com isso, surgiram dúvidas e questionamentos sobre esse prazo, e alegações defendendo que “a palavra aborto tem um conceito, e esse conceito é de até 22 semanas”, citada no próprio PL.
Vale ressaltar que, atualmente, a legislação brasileira não prevê tempo máximo para o aborto a ser realizado nos casos previstos legalmente, conforme o Código Penal. A interrupção da gestação é permitida somente em três situações, sem prazo estabelecido: gravidez decorrente de estupro, risco de vida para a gestante e casos de anencefalia (quando existe má formação no cérebro do feto).
O documento da proposta de lei cita a Norma Técnica do Aborto em casos de Violência, lançada pelo Ministério da Saúde em 2005 e modificada em 2012, que classifica o abortamento como “a interrupção da gravidez até a 20ª ou 22ª semana de gestação, e com produto da concepção pesando menos que 500g. Aborto é o produto da concepção eliminado pelo abortamento”.
Esse trecho tem sido divulgado fora de contexto. O próprio texto do PL reconhece que, na legislação, não há limite máximo de idade gestacional para a realização do aborto. Por isso, a classe médica adotou o termo "aborto legal", que se refere aos casos previstos na lei, e não "abortamento".
“Embora as Normas Técnicas do Ministério da Saúde estabeleçam que, nos casos de gravidez decorrente de estupro, o aborto somente deva ser realizado até a vigésima semana, tem sido divulgado nestes anos pós-pandemia que tais normas devem ser interpretadas de acordo com as leis e que, neste sentido, como o Código Penal não estabelece limites máximos de idade gestacional para a realização da interrupção da gestação, o aborto poderia ser praticado em qualquer idade gestacional, mesmo quando o nascituro já seja viável”, diz o texto do projeto, que defende estabelecer um prazo por conta da viabilidade do feto.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) publicou, em 2022, novas diretrizes sobre o aborto, desaconselhando leis e outras regulamentações que proíbam a prática com base em limites da idade gestacional. O documento traz uma série de recomendações sobre o procedimento. Ou seja, também é falso o argumento de que a OMS recomenda que seja estabelecido o prazo de 22 semanas.