Com o avanço do Projeto de Lei (PL) 1904/24, que equipara a interrupção da gravidez após 22 semanas ao homicídio, a discussão sobre aborto voltou a aquecer no país. Se for aprovada, a medida prevê pena equivalente à de homicídio simples, de seis a 20 anos de reclusão, inclusive nos casos de estupro. Atualmente, a pena para estupradores é de 6 a 10 anos. Zero Hora reuniu argumentos de profissionais de saúde que defendem a legalização do aborto.
O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), anunciou que a proposta só será retomada no segundo semestre. Enquanto isso, profissionais da saúde, políticos, entidades e movimentos sociais divergem sobre o tema. Mas o debate sobre aborto vai além da legislação e do âmbito jurídico, envolvendo questões de ordem religiosa, valores éticos e morais, e de saúde pública.
Direitos reprodutivos
O principal argumento a favor da descriminalização do aborto é a defesa dos direitos reprodutivos e da autonomia da mulher. Segundo a professora Cristiane Cabral, da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), a demanda surge pela necessidade das mulheres de terem controle sobre seus corpos. Segundo a professora, a lógica de não separar o exercício da sexualidade da reprodução segue vigente, impedindo que as mulheres tenham autonomia.
— A ausência de direitos reprodutivos é isso, ter um corpo que só existe para reproduzir. Não somos só receptáculos a serviço da reprodução. Ao tirarmos o direito de decidir nós colocamos as mulheres nesse lugar da obrigação. Quando falamos em atenção integral à saúde, essa é uma das dimensões da saúde das mulheres e homens, poder escolher o momento certo para engravidar, o direito de não querer ter filhos — afirma Cristiane.
Dedicada a estudos sobre gênero, saúde sexual e reprodutiva, a pesquisadora diz que a educação sexual também é ligada a essa reflexão, e que pode contribuir para a garantia dos direitos reprodutivos.
— Podemos ensinar meninas e meninos a respeitarem o corpo do outro, desconfiarem de um toque diferente no corpo, identificarem situações de perigo e saberem onde e com quem buscar ajuda. Esse desamparo que temos hoje e a naturalização da violência sexual resultam nesse contexto em que temos um número cada vez maior de casos de estupro e feminicídios — argumenta a professora.
Estupro no centro do debate
No Brasil, o aborto é permitido em três situações: quando há risco de morte da mulher, quando a gestação decorre de estupro, e em casos de anencefalia fetal (quando não há formação do cérebro). Ou seja, essa discussão tem relação direta com a questão da violência sexual.
De acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, foram registrados 75 mil estupros em 2022 no país. Isso equivale a uma média de 205 casos por dia, o que representa um aumento de 8,2% na comparação com 2021. Em 76% dos casos as vítimas tinham menos de 14 anos. No total, foram 52 mil abusos contra esse grupo naquele ano. Esses são apenas os casos registrados – estima-se que o cenário real seja ainda mais grave. Outro aspecto preocupante é que muitos desses casos acontecem em casa, como destaca Cristiane Cabral:
— No contexto brasileiro, estamos falando de violências sexuais cometidas sucessivamente dentro de casa, por pessoas conhecidas. É inadmissível essa proposta de lei, é mais uma tentativa de aumentar as barreiras de acesso ao aborto legal. O Brasil é um dos países com a lei mais restritiva em relação ao aborto, não podemos tornar esse processo ainda mais difícil.
Um dos argumentos para defender a legalização do aborto é a preocupação com a saúde das crianças e adolescentes nessa situação, uma vez que a gestação oferece riscos a meninas em fase de desenvolvimento. Além disso, o PL 1904/24 poderia trazer consequências psicológicas graves, inclusive a mulheres mais velhas, por terem de levar a gestação adiante após passarem por violações, segundo Cristiane.
De acordo com ela, trata-se de uma questão de proteção dos direitos humanos e da saúde da mulher. A pesquisadora também condena a resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) que proibia a assistolia fetal. A técnica envolve a injeção de substâncias que levam à parada do batimento cardíaco do feto antes de sua retirada do útero. Cristiane destaca que se trata do método mais indicado para interromper gestações com mais de 22 semanas, recomendado pela Organização Mundial de Saúde (OMS).
O que diz a Sogirgs sobre aborto legal
Conforme o médico Lucas Schreiner, presidente da Associação de Obstetrícia e Ginecologia do Rio Grande do Sul (Sogirgs), as gestações que acontecem em idades muito precoces, em crianças ou em adolescentes abaixo de 14 anos, oferecem risco tanto para a gestante quanto para o feto que está se desenvolvendo. Isso pela falta de maturidade e de desenvolvimento da gestante.
Lucas ressalta que é necessário ampliar a conscientização sobre o aborto legal e melhorar os serviços e o acesso ao procedimento nos casos permitidos pela legislação atual, e não dificultar o processo, como propõe o PL 1904/24. Segundo ele, os casos de meninas que interrompem a gravidez após 22 semanas são, majoritariamente, de pacientes que já estavam tentando acessar o serviço há mais tempo e encontraram obstáculos, ou que não tiveram acesso às informações adequadas, seja por estarem em situação de vulnerabilidade ou por desconhecimento.
— Ou são pacientes que estão passando por uma situação de abuso de forma crônica, que não conseguem ter acesso a um centro de saúde, ou meninas que foram ao centro de saúde e não obtiveram a informação correta, ou receberam um atendimento que não as acolheu a ponto de se sentirem seguras para dar andamento ao processo de interrupção — afirma o médico.
A Sogirgs segue o posicionamento da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo), que lançou em junho uma nota oficial condenando o “PL do aborto”, pelo fato da proposta criminalizar mulheres em situação de vulnerabilidade.
“A Sogirgs reforça posição contrária a caracterização de homicídio ao aborto previsto em lei após 22 semanas, criminalizando adolescentes e mulheres em situação de vulnerabilidade, quando estas deveriam receber todo acolhimento, suporte emocional e cuidados de saúde”, diz a nota divulgada pela entidade no dia 14 de junho.
O presidente da Sogirgs afirma que os procedimentos de aborto legal realizados atualmente são seguros, especialmente aqueles conduzidos em hospitais autorizados e, preferencialmente, no momento precoce da gestação, nas primeiras semanas.
— Esses métodos são seguros. Eventualmente, podem trazer algumas complicações, mas uma vez que a paciente esteja no ambiente hospitalar, essas complicações podem ser manejadas, fazendo com que essa mulher mantenha a sua saúde física íntegra e possibilitando gestações desejadas, não relacionadas a qualquer situação abusiva ou que possibilitaria uma interrupção no futuro — explica Lucas.