O aborto sempre foi um tópico polêmico, que divide opiniões da sociedade e da própria classe médica. A polarização se intensificou com as discussões sobre o Projeto de Lei (PL) 1904/24, que equipara o aborto após 22 semanas ao homicídio. Caso aprovada, a medida prevê aplicar pena equivalente à de homicídio simples, de seis a 20 anos de reclusão, inclusive nos casos de estupro. Atualmente, a pena para estupradores é de seis a 10 anos.
Nesta semana, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), anunciou que a proposta só será retomada no segundo semestre, com a formação de comissão representativa. Mas o debate sobre aborto vai além da legislação e do âmbito jurídico, envolvendo questões de ordem religiosa, valores éticos e morais, e de saúde pública. Profissionais da saúde, políticos, entidades e movimentos sociais divergem sobre o tema. Abaixo, a reportagem de Zero Hora reúne os argumentos de profissionais da área de saúde que se opõem à descriminalização do aborto.
Direito à vida e moralidade
O principal argumento contra a flexibilização do aborto é a ideia de que o embrião é um ser humano desde sua concepção e, por consequência, tem o direito inviolável à vida. O Brasil é signatário da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, que determina, no artigo 4º, que o direito à vida deve ser protegido desde o momento da concepção.
Por isso, opositores do aborto defendem que o feto merece respeito e proteção jurídica e a interrupção da gravidez pode ser considerada um homicídio e uma violação aos direitos humanos. Historicamente, a prática é interpretada como um crime por diversos grupos.
— Aborto é crime no Brasil, só existem três excludentes de ilicitude, é isso que está na nossa legislação, temos que seguir a lei. Se eu sou médica e trato a vida das pessoas, eu preciso ser a favor da vida, não posso ser a favor da morte. Pelo contrário, os médicos lutam para que a morte não aconteça. Seria um contrassenso apoiar o aborto. Minha opinião é sempre favorável à vida — diz a médica Tatiana Della Giustina, conselheira federal de Medicina para o Rio Grande do Sul.
O aborto é permitido no país em três situações: quando há risco de morte da mulher, quando a gestação decorre de estupro, e em casos de anencefalia fetal (quando não há formação do cérebro). Segundo Tatiana, é importante balizar debates científicos do ponto de vista ético, e a interrupção da gravidez é uma das questões que exige esse olhar.
A médica otorrinolaringologista participou da elaboração da resolução nº 2.378/2024, do Conselho Federal de Medicina (CFM), que proibia profissionais da saúde de utilizarem o método da assistolia fetal em gestações com mais de 22 semanas decorrentes de estupro. A técnica envolve a injeção de substâncias que levam à parada do batimento cardíaco do feto antes de sua retirada do útero.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda o procedimento em casos de aborto legal, também decorrentes de casos de estupro. Em maio, o Supremo Tribunal Federal (STF) suspendeu a decisão do CFM. Para Tatiana, trata-se de uma polêmica desnecessária em torno da resolução, porque o feto teria viabilidade de sobreviver fora do útero após 22 semanas de gestação e deveria prevalecer a proteção à vida do bebê, nestes casos.
— Esse tipo de ação é cruel. Nem para animais a gente permite a assistolia. Por que deveríamos permitir para seres humanos? Como médicos, não podemos ser favoráveis a essa metodologia. É um procedimento destrutivo, que causa sofrimento a fetos que poderiam ser viáveis para adoção depois de saírem do útero. Ter liberdade para decidir encerrar uma vida que poderia ser viável é terrível — afirma a médica.
Ela acrescenta que a flexibilização do aborto também poderia sobrecarregar o Sistema Único de Saúde (SUS) desnecessariamente. Além disso, a interrupção da gravidez é vista como um ataque aos ideais éticos e religiosos, considerando os valores cristãos – que representam boa parte da população brasileira.
A prática é interpretada como uma violação da lei natural, que determina a finalidade da procriação para o ato sexual. O autor do PL 1904/24 é o pastor Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), um dos integrantes da chamada bancada evangélica do Congresso Nacional.
Risco à saúde
Outro aspecto levantado por Tatiana são os perigos da interrupção da gravidez à saúde da mulher, principalmente em procedimentos feitos de forma ilegal, em clínicas clandestinas. Segundo a médica, a prática pode aumentar o risco de contrair infecções e de internação hospitalar.
Segundo o ginecologista Marcelo Matias, ex-presidente do Sindicato Médico do Rio Grande do Sul (Simers), todo procedimento médico tem riscos, benefícios e contraindicações. Mesmo os abortos realizados com autorização, nos casos previstos pela legislação, há riscos, especialmente quando a gestação está num estágio mais avançado.
— Quanto mais cedo foi realizado o aborto, melhor. Até 12 semanas de gestação, se faz o procedimento de esvaziamento uterino, por meio de aspiração ou curetagem uterina. É fundamental que o processo seja feito nas primeiras semanas. Quanto mais tardia a gravidez, mais perigoso e mórbido é o processo — afirma o médico, que atua no Hospital Materno Infantil Presidente Vargas, um dos locais de Porto Alegre que faz o procedimento pelo SUS.
Ele destaca que não interessa a opinião pessoal dos profissionais da saúde sobre o assunto. O que deve prevalecer, segundo o especialista, são os fatos e os aspectos científicos.
— A discussão do aborto deveria ser mais técnica e menos política. Quando fugimos do âmbito técnico, levamos em consideração fatores que não têm a ver com a medicina, com a ciência. O que me causa surpresa é a discussão estar centrada nos casos mais excepcionais, após 22 semanas. A esmagadora maioria das mulheres que procuram aborto chegam antes desse estágio. Nossa legislação e conduta precisam estar baseadas na realidade dos casos.
Por outro lado, Tatiana defende que a classe médica também é responsável por realizar o balizamento ético dessas questões.
— Tem uma máxima da bioética que diz que nem tudo que é cientificamente possível é eticamente aceitável. Isso é uma constante das nossas decisões. No CFM, invariavelmente precisamos discutir esses assuntos polêmicos. Cabe aos órgãos com essa envergadura essa avaliação — destaca.