De parto a parada cardíaca, de crise de ansiedade a derrame cerebral, os atendimentos médicos não cessam na Universidade Luterana do Brasil (Ulbra), em Canoas, na Região Metropolitana, no maior campo de refugiados climáticos do Rio Grande do Sul. Todos os dias, centenas de pessoas procuram socorro nas estruturas de saúde montadas para atender os 7,5 mil flagelados que estão no local.
Aos 54 anos, Jane Teresinha escorregou e caiu numa das salas de aula onde está abrigada desde que a água chegou ao teto de casa, no bairro Fátima. Levada até o hospital de campanha montado no campus pelo Ministério da Saúde, recebeu medicação para dor e foi transferida para o Hospital Nossa Senhora das Graças, onde um raio X constatou fraturas no pé direito e na mão esquerda.
— O primeiro atendimento foi muito bom, estou com gesso na mão e no pé e medicada. Só que agora fui marcar a revisão e disseram que não tem nem previsão, que é para ficar ligando todo dia — desabafa a dona de casa, enquanto é levada de volta à sala de aula por soldados do Corpo de Bombeiros.
Como 60% do território municipal, o sistema de saúde de Canoas entrou em colapso com a enchente. Dos 27 postos, 19 alagaram. Das quatro unidades de pronto-atendimento (UPAs), três submergiram. Os quatro centros de atenção psicossocial (Caps) também. O Hospital de Pronto Socorro (HPSC) foi evacuado às pressas após a água chegar ao segundo andar do edifício e os cerca de cem pacientes foram transferidos para o Hospital Universitário (HU).
— As inundações desorganizaram toda a nossa rede. Estamos com 130% de lotação aqui no Hospital Universitário, o nono e o décimo andar tomado pelos pacientes que vieram do Pronto Socorro. Nos primeiros dias, não havia colchões e precisamos colocá-los sobre cobertores — diz a secretária-adjunta de Saúde, Caroline Schirmer.
Situado na entrada do campus da Ulbra, o HU não tem emergência nem foi concebido para ser porta de entrada do sistema. Nos primeiros dias da enchente, porém, houve uma corrida por atendimentos. Somente no dia 3, quando a água começou a avançar sobre a cidade, chegaram três gestantes em trabalho de parto e um homem com acidente vascular cerebral hemorrágico. Todos foram atendidos e receberam alta.
Para dar atenção aos desabrigados, o Ministério da Saúde montou um hospital de campanha. São três barracas conexas da Força Nacional do SUS, operando 24 horas por dia ao lado dos seis prédios onde estão alojadas as vítimas da enchente.
Quatro médicos, quatro enfermeiros e quatro técnicos de enfermagem atuam em cada plantão. A estrutura conta com dois consultórios clínicos adulto e um pediátrico, três leitos de observação e uma sala de estabilização e cuidados críticos capaz de manter por até 12 horas um paciente de UTI. Em média, são feitos de 100 a 160 atendimentos por dia, com crescimento dos casos de mordida de cães em função da resistência animal aos resgates.
— Fazemos o papel de UPA avançada, com consultas e primeiro atendimento, mas já recebemos três pacientes em parada cardiorrespiratória. Vem muita gente trazida pelas forças de segurança também e até de municípios da região — conta um dos enfermeiros.
Em cada prédio transformado em condomínio de abrigados foi improvisado um ambulatório e uma pequena farmácia. Voluntários e estudantes da Ulbra verificam a pressão arterial e temperatura, além de outros cuidados mais simples. Em uma UPA instalada à beira do campo de futebol onde pousam os helicópteros foi instalado um consultório odontológico.
Angústia e esgotamento
Com o passar dos dias, pacientes mais complexos começam a se angustiar. Alojada numa quadra do ginásio de esportes com o marido e os filhos e o genro, Eliane Viana da Silva, 49 anos, não sabe quando vai retomar a quimioterapia para tratar um câncer avançado de intestino.
— A mãe não pode ficar sem fazer a quimio (terapia) porque senão a barriga começa a inchar, mas aqui no Hospital Universitário não tem e no (Hospital Nossa Senhora) das Graças não tem previsão de voltar — preocupa-se Fernanda da Silva, vendo a mãe estirada em um colchão no chão.
Equipes do SUS circularam pelos prédios nesta terça-feira, verificando a situação dos albergados e as principais necessidades. Com a queda da temperatura, há urgência por palets, colchonetes e cobertores, para amenizar o contato com o chão frio.
Embora haja um levantamento com nome, idade e comorbidades de cada abrigado, novas doenças começam a surgir, sobretudo síndromes respiratórias, diarreia aguda, dengue e leptospirose. Há também preocupação em vacinar as pessoas contra covid-19, influenza e sarampo, em função da proximidade mantida nas salas e ginásios.
Quatro caminhões com medicamentos doados chegaram nesta semana, movimentando a unidade avançada da Cruz Vermelha. Assim como a maioria dos serviços prestados no campus, os remédios são organizados por voluntários.
Na primeira semana, cerca de 2 mil pessoas se apresentaram para atuar no campus, inclusive de outros Estados, mas a equipe vai diminuindo dia a dia. Além do cansaço físico e da necessidade de retomada do trabalho formal, muitos começam a sofrer esgotamento mental, um mal que se alastra com velocidade.
Psicólogos e psiquiatras auxiliam no atendimento dos abrigados, sobretudo nos casos de crises psicóticas e de esquizofrenia, mas ninguém passa incólume pelo maior desastre climático do Rio Grande do Sul. Ao menos dois profissionais de saúde que estavam atuando no HU entraram em surto.
— A parte psicológica vai ser uma das mais preocupantes, pois muita gente não vê luz no fim do túnel — afirma Caroline Schirmer.