Um nascimento programado em detalhes teve o planejamento completamente alterado pela catástrofe das enchentes no Rio Grande do Sul — e exigiu, inclusive, um deslocamento por via aérea. Grávida do primeiro filho, Cassiane Rech, 38 anos, teve de pegar carona em um helicóptero que partiu de Caxias do Sul para se submeter a uma cesariana na Santa Casa de Porto Alegre, onde teria todo o aparato necessário para cuidar de Bruno Fernandes Rech, diagnosticado com uma cardiopatia grave durante a gestação.
Na semana passada, as dores do parto começaram na segunda-feira (6), quando restava um único caminho por via terrestre entre a cidade serrana e a Capital. Cassiane pediu ajuda em um hospital conveniado a seu plano de saúde. Médicos plantonistas fizeram contatos durante a madrugada de terça (7) e conseguiram que a gestante embarcasse no voo programado para levar outro paciente a Porto Alegre.
Cassiane chegou em cerca de 30 minutos, na manhã de terça, enquanto o marido, Adriano Fernandes dos Santos, passou 9h30min na estrada para vencer um percurso que, em condições normais, levaria 2h. Devido às complicações do deslocamento, a mãe estava sozinha no momento da cesárea, realizada naquela tarde, no Hospital Santa Clara.
— Senti um pouco de tristeza por não ser como eu imaginava, mas estava aliviada só pelo fato de estar no hospital. O resto não importava mais — recorda a mãe, internada só com a roupa que vestia e os documentos.
Da sala de parto, Bruno logo foi transferido para a unidade de terapia intensiva (UTI) do Hospital da Criança Santo Antônio, onde a cirurgia para correção da chamada transposição das grandes artérias seria realizada dois dias depois. Um coração normal tem duas grandes artérias saindo do órgão: a pulmonar, do lado direito, que leva sangue para o pulmão; e a aorta, no lado esquerdo, responsável pelo sangue para o restante do corpo. Em casos como o de Bruno, o coração apresenta um problema de formação, e as artérias estão em posição invertida, o que configura um quadro muito grave, como explica o cardiologista pediátrico Marcelo Brandão da Silva, coordenador da área de Cardiologia Fetal da Santa Casa.
— Esses bebês normalmente evoluem bem dentro da barriga da mãe, com crescimento normal. Mas, no momento em que nascem, quando há a separação, podem ter quadros muito graves, têm dificuldade de oxigenação do sangue e podem morrer. O sangue que chega ao coração e precisa ser mandado para o pulmão para se oxigenar não encontra esse caminho — diz Silva, morador de Canoas, que também estava em situação complicada quando começou a tentar viabilizar o transporte da paciente.
Em um bebê como Bruno, que nasceu pesando 3,340kg, o coração tem cerca de 100g. O procedimento envolveu três cirurgiões e durou cerca de cinco horas. O complexo hospitalar trabalhava com gerador para dispor de energia elétrica e dependia de caminhão-pipa para ter água. Apenas hospitais especializados conseguem realizar esse tipo de operação, por isso era imprescindível que Cassiane conseguisse chegar a tempo.
— É uma cirurgia extremamente detalhada e complexa. Além de mobilizar a aorta e a artéria pulmonar, também as coronárias, que medem milímetros, têm que ser mudadas de lugar — descreve o cirurgião cardiovascular Paulo Prates, integrante da equipe.
A intervenção foi considerada um sucesso e, em princípio, corrigiu totalmente o problema. Bruno segue na UTI, em recuperação. Poderá ter alta nos próximos dias e passará a infância em acompanhamento regular. Quando está tudo certo, a criança tem condições de levar uma vida praticamente normal, com mínimas limitações.
Antes da tragédia, Cassiane e Adriano já haviam alugado um apartamento na Capital para passar um mês com fácil acesso à Santa Casa. Os pais e uma das avós de Bruno se revezam nos cuidados ao menino.
— Sinto muito amor, muita emoção. Tudo que a gente passou até agora valeu a pena. Muitas pessoas talvez tenham precisado de atendimento médico e não conseguiram. Eu consegui. É muita gratidão — comenta a mãe do pequeno Bruno. — Até hoje parece que estou num sonho, que não acordei ainda — conclui.