Rodrigo Grassi-Oliveira (*)
O que a inteligência artificial (I.A.) descobriu sobre os usuários de crack de Porto Alegre? O óbvio, mas vou explicar.
Faz 12 anos que nosso grupo de pesquisa iniciou um projeto que visa identificar pontos de fragilidade em usuários de crack em Porto Alegre. Após tantos anos, conseguimos escutar a história de mais de 2 mil pessoas: homens e mulheres, jovens e idosas, pretas, pardas e brancas, pobres e ricas, religiosas e agnósticas, gremistas e coloradas.
Nosso foco era achar consequências biológicas relacionadas ao uso da substância, ou seja, descrever como ela impactaria no cérebro e nas células dos usuários. Para isso, usamos exames avançados de neuroimagem, genéticos e moleculares; cultivamos células do sistema imunológico, além de extensas avaliações neuropsicológicas e psiquiátricas. Despendemos dois anos integrando todas essas variáveis para gerar um dos mais bem detalhados bancos de dados sobre usuários de crack do mundo.
Aplicamos técnicas de IA para que nos auxiliassem a identificar onde estariam as fragilidades. E sabe o que a IA nos informou? Que vulnerabilidade biológica não é reflexo da quantidade de “pedra” que alguém usa: ela não reflete o “estágio motivacional” que alguém possa estar e muito menos justifica a internação compulsória de alguém. A vulnerabilidade biológica é reflexo da marginalização e da história de violências, traumas e abusos a que essas pessoas foram expostas desde criança.
Nos usuários porto-alegrenses, ela está associada a pessoas do gênero feminino, pretas, pobres, mães solo, sem acesso a serviço de saúde de qualidade e que recorreram ao uso de álcool, tabaco, e outras substâncias muito cedo.
Nós já sabíamos, a cada uma das centenas de entrevistas que fizemos: o uso de drogas é um problema social. Logo, as intervenções precisam ser sociais. Se ainda tens resistência em pensar assim, por questões ideológicas ou morais, talvez agora que desumanizamos a aprendizagem, isso facilite assimilar.
A inteligência artificial nos contou o óbvio.
Saiba mais – quatro artigos relacionados a este estudo
- Investigamos as diferenças entre características de homens e mulheres usuárias de crack na cidade de Porto Alegre."
- Avaliamos os efeitos cerebrais do uso de cocaína tipo crack através de exames de ressonância magnética e também analisando o tecido cerebral de usuários que morreram de overdose.
- Analisamos as características de imunidade de usuários de crack através da cultura celular dos glóbulos brancos (linfócitos).
- Realizamos um estudo qualitativo que buscou investigar as percepções e motivações de mulheres quanto ao seu uso de crack.
(*) Pesquisador ligado ao Instituto do Cérebro (InsCer), lidera a segunda fase da pesquisa “Alvos de Proteção para Usuários de Cocaína-Crack”, que teve início em 2017. É professor de Psiquiatria na Escola de Medicina da PUCRS.