Ainda no rastro do esgotamento provocado pelas exigências da pandemia, o Sistema Único de Saúde (SUS) continua com velhos e novos desafios para seguir atendendo a população brasileira. Porta que permite a entrada dos usuários, a Atenção Primária à Saúde (APS) é um dos setores contemplados pela Agenda Mais SUS, projeto do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (Ieps), organização sem fins lucrativos, independente e apartidária, e da Umane, associação filantrópica independente. Levantamentos realizados por essas entidades mostram um cenário desafiador no Rio Grande do Sul, que tem a terceira pior cobertura populacional estimada da Estratégia Saúde da Família (ESF) no Brasil, depois de São Paulo e Rio de Janeiro.
A APS é um conjunto de ações para prevenção e não agravamento de doenças, diagnóstico, tratamento, reabilitação e redução de danos. A ESF está dentro desse propósito, em contato direto com as comunidades, e tem como configuração elementar - há variações - equipes multidisciplinares formadas por médico, enfermeiro, auxiliar e/ou técnico de enfermagem e agente comunitário de saúde. Esses profissionais, ligados a unidades básicas de saúde (UBS), contatam e acompanham os moradores de diferentes regiões das cidades.
Os dados, apresentados para informar a população, pesquisadores e novos gestores, embasando correções de rumo e projetos, indicam o Estado em patamares abaixo da média nacional em cobertura da APS em dois momentos. Em 2010, o percentual de população contemplada no Rio Grande do Sul era de 57%, enquanto a média nacional foi de 66%. Dez anos depois, em 2020, apesar do aumento da taxa para 74%, o território gaúcho continuou atrás do índice geral do país, que atingiu 76%. De acordo com o Ieps, alguns Estados foram priorizados nas análises, não havendo nenhum comparativo geral incluindo todos.
Rebeca Freitas, coordenadora de Advocacy e Relações Governamentais do Ieps, explica que 80% dos casos em saúde podem ser resolvidos na APS. Se um paciente tem determinado sintoma, uma ESF é capaz de diagnosticar, encaminhar para exames e consultas com especialista. Não são todos os quadros que precisam de investigações mais detalhadas ou atendimento em hospital, por exemplo.
— Falar em cobertura baixa de ESF significa falar na população que está desassistida, mais suscetível a desfechos quando você não previne, não acompanha, não trata preventivamente. Uma população mais hipertensa, que se alimenta pior, por exemplo. Falar em cobertura baixa significa menos pessoas tendo acesso e potencial de mais agravo, que podem sobrecarregar as famílias e o sistema de saúde também — afirma Rebeca.
Sobre o retrato do Rio Grande do Sul, a coordenadora destaca a cobertura desigual para a ESF entre as diferentes regiões. A mais baixa é a de Caxias do Sul, na Serra, com 38,3%, enquanto a maior fica com a de Caminho das Águas, no Norte (91,3%).
— Há a necessidade de fortalecer a regionalização. Organizar regiões de saúde significa maior eficiência na alocação de recursos. Um município pode não ter recursos para uma UBS, mas o município do lado pode ter. (Grandes diferenças) implicam problemas de equidade, problemas para uma população mais vulnerável, que tem que se deslocar para outra região de mais recursos — diz Rebeca.
O SUS é tripartite, pactuado nas esferas federal, estadual e municipal. Trocas de ministros, secretários e demais gestores podem provocar descontinuidade em estratégias, o que atrapalha a estrutura, segundo a coordenadora do Ieps:
— Outro fator é o financiamento que permita a expansão da ESF, vindo do Ministério da Saúde, para ampliar a cobertura. Há necessidade de reformular o modelo de financiamento à APS.
Fixação de médicos em cidades do Interior é obstáculo
Coordenadora da Divisão de APS da Secretaria Estadual da Saúde (SES), Laura Ferraz reconhece uma estagnação na cobertura de ESF no Rio Grande do Sul a partir de 2010. A responsabilidade da atenção básica, diz Laura, é dos municípios, que fazem o gerenciamento. Cabe ao governo do Estado complementar o financiamento, direcionando recursos do Tesouro estadual, e dar suporte às administrações, o que é feito, segundo ela, de forma sistemática.
— Por que não avançamos? Por que não conseguimos que municípios criem mais ESF se esse é o modelo que queremos? É multifatorial — observa a representante da SES, ressaltando as diferentes realidades das localidades.
Quanto às diferenças na cobertura entre as diferentes regiões, Laura aponta o aspecto socioeconômico como um dos motivos. Populações com melhores condições de vida tendem a não recorrer com frequência à rede pública por contarem com convênios médicos, por exemplo.
— Na Serra, os municípios têm mais autonomia, optam por outros modelos, enquanto a gente, como Estado, não consegue atuar muito. É feito o cadastramento da população e não tem muito por que ter equipes para cobertura de 100% se as pessoas não acessam o serviço — justifica.
Outro obstáculo, de acordo com a SES, é a dificuldade de fixação de médicos em cidades do Interior. A alta rotatividade impacta no funcionamento da ESF.
— Municípios da Região Sul formam vários médicos por ano e têm dificuldade imensa de contratar profissionais para 40 horas. Uma ESF sem médico ou outro profissional não tem financiamento do ministério. Pode estar atendendo, mas não se configura como ESF. Essa equipe recebe outros recursos do Estado — diz Laura.
Secretária da Saúde do RS, Arita Bergmann reforça que a principal causa da diminuição da cobertura é por conta do profissional médico:
— Quando tínhamos o programa Mais Médicos, havia outro critério de colocação de profissionais nos municípios. Com o novo programa do Ministério da Saúde, chamado Médicos pelo Brasil, o Rio Grande do Sul perdeu 220 vagas de médicos. Ou seja, isso por si só já fez diminuir o número de equipes de Estratégia de Saúde da Família. E dos profissionais do Médicos pelo Brasil, apenas 50% dos designados para atuar no Rio Grande do Sul estão atuando. Isso significa que é uma grande dificuldade dos gestores municipais completar a equipe, que é composta por agente comunitário, técnicos de enfermagem, enfermeiros, dentista (quando tem estratégia de saúde bucal) e médico.
No ano passado, a SES atualizou o montante destinado aos municípios para cofinanciamento da APS como um todo: de R$ 274 milhões para R$ 328 milhões anuais.
— Sabemos que a ESF é a melhor estratégia que temos hoje, considerando todas as características do Brasil. O Estado vem trabalhando na qualificação dessas equipes. Continuamos incentivando os municípios a investir em ESF. Atualizamos o financiamento com esse olhar de como o Estado pode cumprir seu papel de indutor de resultado do que é potente. Entendemos que pensar dessa forma é o que tem resultado e queremos ampliar — complementa Laura, informando que o acréscimo de outros profissionais, como dentistas, é incentivado.
Arita reflete que muitas vezes o recurso de custeio não é suficiente para pagar o salário dos profissionais. No RS, o governo do Estado criou a Rede Bem Cuidar, que está em 428 municípios e ampliou o incentivo estadual, dobrando o valor por equipe de Estratégia de Saúde da Família.
A região de Caminho das Águas, destacada no material produzido pelo Ieps como tendo o melhor desempenho na cobertura de ESF no Rio Grande do Sul, compreende os municípios de Alpestre, Ametista do Sul, Barra do Guarita, Bom Progresso, Caiçara, Cristal do Sul, Derrubadas, Erval Seco, Esperança do Sul, Frederico Westphalen, Iraí, Liberato Salzano, Novo Tiradentes, Palmitinho, Pinhal, Pinheirinho do Vale, Planalto, Rodeio Bonito, Seberi, Taquaruçu do Sul, Tenente Portela, Tiradentes do Sul, Três Passos, Vicente Dutra, Vista Alegre e Vista Gaúcha. Conforme a SES, Derrubadas e Novo Tiradentes se destacam como experiências exitosas e apresentam 100% de cobertura.