Preocupada em manter os exames preventivos contra o câncer de mama em dia, a aposentada Cristiane de Fatima Pinheiro Mayer, 59 anos, fez uma mamografia pelo Sistema Único de Saúde (SUS), em Porto Alegre, em 2021. Quando recebeu o resultado, o médico percebeu uma alteração, que precisaria de um exame complementar para ser avaliada.
A requisição para uma ecografia mamária (ou ultrassonografia mamária bilateral) foi encaminhada em julho do ano passado. Desde então, a moradora da Capital é uma das 18.934 pessoas que estão aguardando para poder realizar o mesmo exame. Como Porto Alegre é referência, a fila também tem pessoas de municípios vizinhos.
O número é referente a setembro deste ano, conforme relatório da Secretaria Municipal de Saúde (SMS). No mês em questão, apenas 176 exames foram ofertados à população. Esta ecografia é o procedimento com maior fila na Capital, correspondendo a 18% das solicitações e com pacientes esperando desde 21 de fevereiro de 2019.
A prefeitura explica que esses serviços, em grande maioria, são contratados em hospitais ou clínicas, dependendo da disponibilidade das estruturas e de recursos financeiros. A SMS salienta que casos com quadro com maior de necessidade são priorizados e quem avalia isso é o médico que atende o paciente. Segundo a pasta, o desafio é grande por conta também da demanda reprimida da pandemia, que causa desequilíbrio de oferta e demanda. Atualmente, estão sendo agendadas as solicitações de janeiro de 2020, e nesta semana será aumentada em seis vezes a oferta, indo para 1.128 exames mensais.
— Esse exame é fundamental para que a gente possa fazer o diagnóstico diferencial, às vezes de um cisto, que é totalmente benigno, com um tumor maligno de mama. Todas essas pacientes estão na mesma fila e isso tem atrasado muito o diagnóstico e a detecção precoce de câncer de mama — explica a presidente do Instituto da Mama do Rio Grande do Sul (Imama) e chefe do serviço de Mastologia do Hospital Moinhos de Vento, Maira Caleffi.
A médica salienta que não basta ter acesso à mamografia para prevenção, é preciso dar condições para exames complementares e ter agilidade nos laudos. Atuando como consultora técnica da Organização Mundial da Saúde (OMS), Maira ressalta que um estudo recente da entidade apontou que, se ao menos 60% das pacientes chegassem ao tratamento com estágios 1 e 2 de câncer de mama, a mortalidade poderia cair em 30%.
— Um dos maiores gargalos no SUS é a ultrassonografia. O quanto antes se tem o diagnóstico, melhor para a paciente, para o sistema e para todos. Vai ter maior chance de cura, menos tratamentos agressivos e menor impacto financeiro aos cofres públicos — defende a mastologista.
Para o coordenador do Serviço de Mastologia e Pesquisa Clínica do Hospital Conceição, José Luiz Pedrini, o que falta atualmente é efetividade no procedimento e no diagnóstico.
— O problema não é a falta da ecografia, é a falta da qualidade desses exames. Não adianta fazer ecografias isoladas. Você tem que ter um contexto. Os pacientes que têm alguma necessidade de um exame, além da mamografia, devem ir direto para um centro que possa fazer o encaminhamento. Frequentemente, eles se perdem e não recebem. Uma vez recebido, ele vai ter que passar para outro agendamento, que nem sempre se comunica. Então ficam os exames perdidos e ficam os pacientes perdidos. Essa é a nossa realidade — lamenta.
Caso de agilidade em meio à pandemia
Moradora de Cachoeirinha, a autônoma Marlizi Bitencourt Zelho Wojtysiak é um caso de tratamento bem sucedido pelo SUS. Quando tinha 45 anos, soube que tinha nódulos benignos nas mamas e foi acompanhando. Um tempo depois, teve uma alteração em um exame, mas teve medo de continuar a investigação.
No início da pandemia, seu filho chamou a atenção para um caroço que ficava aparente na região do tórax. No final de 2020, diante da grande insistência da família, começou a investigação.
Sem plano de saúde, Marlizi procurou, primeiro, um médico particular. Ela conta que eram tantos nódulos nas duas mamas que o profissional a encaminhou com urgência a uma unidade de saúde de Cachoeirinha.
— Eu tive um pouco de sorte, porque o atendimento foi rápido. Conversei com a atendente do posto e ela disse "acho que seu caso é grave, mas não tem consulta". Vem aqui na semana que vem para falar com o médico — relembra a paciente.
Uma semana depois, em 1º de dezembro de 2020, Marlizi recebeu o encaminhamento para ir até a Secretaria Municipal de Saúde de Cachoeirinha. Em dois dias, já estava com consulta marcada no Hospital Fêmina, em Porto Alegre, que aconteceria dali a 15 dias.
— Naquela mesma manhã (da consulta na Capital), eu fiz mamografia, ecografia mamária e biópsia. Já saí de lá com consulta marcada para o oncologista —afirma.
Com a confirmação de tumores malignos nas duas mamas, Marlizi começou quimioterapia um mês depois, e ainda passou por cirurgias e sessões de radioterapia. Em julho de 2021, fez a mastectomia bilateral, que é a remoção do tecido mamário de ambos os seios. Em outubro do mesmo ano, fez a reconstrução mamária. Seu tratamento finalizou em março deste ano. Hoje, segue tomando medicação diária e mantém consultas para controle.
— Não tenho uma queixa do SUS. Fiz todo o meu tratamento no auge da pandemia. Não tive nenhuma consulta cancelada, do início ao final, deu tudo certo. Fui muito bem atendida, pelos médicos e enfermeiros — enfatiza.
O que diz a lei
Prestes a completar um ano no próximo dia 19 de novembro, o Estatuto da Pessoa com Câncer estimula a prevenção da doença e o acesso a tratamento pelo SUS. Conforme a defensora pública e dirigente do Núcleo de Defesa da Saúde, Liliane Paz Deble, a Lei nº 12.732/2012 garante esses direitos.
Nos casos em que a principal suspeita de diagnóstico for neoplasia maligna (câncer), os exames necessários devem ser realizados em até 30 dias. Se isso não acontecer, a paciente pode ajuizar uma ação com um advogado particular ou com a defensoria pública.
— Temos condições de verificar quanto tempo é a espera e o que está acontecendo para ela não estar recebendo aquele exame. Feita a tentativa extrajudicial e essa não sendo suficiente, nós vamos ingressar com uma ação em um tempo muito rápido — explica a defensora Liliane.
Tendo o diagnóstico de câncer confirmado, a lei também garante que a paciente terá 60 dias para que o tratamento seja iniciado. Se o prazo não for cumprido, ela também pode ajuizar uma ação para que os procedimentos sejam fornecidos.
— O que falta nós fazermos é fazer valer essa lei — afirma a defensora.
A Defensoria Pública do Estado não tem um levantamento específico de quantas ações foram ajuizadas para conseguir exames de câncer de mama.
Neste ano, apenas 29,5% dos exames para câncer de mama tiveram laudo disponibilizado em até 30 dias, conforme dados do Departamento de Economia e Estatística do Estado. Se comparado ao cenário anterior à pandemia, o percentual era de 35,1% em 2019.
Segundo o Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES), o Rio Grande do Sul possui 211 mamógrafos, sendo 203 em uso pelo SUS.
O câncer de mama em Porto Alegre
Nos últimos cinco anos, as neoplasias malignas (câncer) ocuparam o segundo lugar como principal causa de mortalidade em mulheres, com um coeficiente de 193 casos por 100 mil, em Porto Alegre. Em mulheres em idade fértil, as neoplasias malignas foram as principais causas de morte, com um coeficiente de 27,5 casos por 100 mil mulheres nessa faixa etária. Nesta categoria, o câncer de mama é responsável pelo maior número de óbitos.
Os dados são de um boletim divulgado nesta semana pela Secretaria Municipal de Saúde, por meio da Diretoria de Vigilância em Saúde, que mostrou que a Capital teve 166 óbitos por câncer de mama em 2022 (até 19 de outubro) e 243 em 2021.
De acordo com o Instituto Nacional do Câncer (Inca), a estimativa de incidência de câncer de mama para o período de 2020 a 2022 é de 660 casos absolutos, com uma taxa de 81,8 casos por 100 mil mulheres no município.