Quando se fala em startups, talvez seja mais fácil imaginar outros tipos de inovação sendo criada do que serviços especificamente na área da saúde. Médico anestesista e professor de MBA da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), Cristiano Englert vai mostrar, em palestra no Sesi Conecta Saúde, a ser realizado na próxima terça e quarta-feira, dias 9 e 10/8 (leia mais sobre o evento, que é online e gratuito, ao final desta entrevista), como novas empresas estão apostando na tecnologia para oferecer produtos e serviços que tornam a medicina mais acessível. São as healthtechs, em ascensão no Brasil e no mundo.
Investidor anjo de startups, Englert, que tem 45 anos, deu a seguinte entrevista a GZH, em que fala sobre a telemedicina e as consultas virtuais, que ficaram muito populares a partir da pandemia, e a possibilidades de realizar exames a distância, o que entra no horizonte com a implantação da rede 5G.
Por favor, conta um pouco da tua trajetória na área da saúde e tecnologia.
Sempre gostei de novas tecnologias. Utilizava os palmpilots, que são os predecessores dos smartphones. Também fiz estágio em hospitais de Chicago e Nova York durante a faculdade, em 2001, que já utilizavam de tecnologias para fazer prontuários médicos, tanto por esses dispositivos quanto por áudio. Visitei aceleradoras no Vale do Silício, como a Rock Health, em 2014, e a Stanford Medicine X, em 2015. Em 2016, criei, em parceria com sócios, uma aceleradora no setor de saúde, a HealthPlus, e começamos a buscar startups para investir. Juntamos 43 médicos e pessoas ligadas à saúde que gostariam de investir em startups. Na época estivemos em quatro capitais, São Paulo, Porto Alegre, Recife e Belo Horizonte, e tivemos 329 startups inscritas. Dessas, investimos em cinco. Investimos, por exemplo, em uma startup que trabalha com teleatendimento psicológico, a Zenkclub, e também na MedRoom, de realidade virtual para a educação médica. As empresas tiveram grande sucesso – a Zenklub recebeu investimento de um fundo europeu e a MedRoom foi comprada por um dos maiores grupos de educação, que é o Ânima. Hoje, sou um investidor anjo de startups e estou desenvolvendo uma nova plataforma para conectar startups do mundo todo e buscar negócios e conhecimento em hubs ligados à saúde.
O que faz uma healthtech? Que tipos de serviços oferece?
As healthtechs são startups na intersecção da saúde com a tecnologia. Em geral começam pequenas, como projetos, mas precisam ser escaláveis, ou seja, demonstrar que conseguem ganhar público de forma rápida. Por exemplo, uma healthtech que vende serviços de bem-estar pode atingir milhares de pessoas em um ano, se for um serviço bem feito. É isso o que define uma healthtech: uma empresa na área da tecnologia que tem poder de escalar diversas empresas ou diversas pessoas. Atualmente, as healthtechs têm ofertado diversos produtos. Há healthtechs que trabalham com telemedicina, mas há outras que trabalham com prontuários eletrônicos, segurança de dados, gerenciamento de dados de pacientes – essas, no caso, permitem que o médico tenha uma melhor organização e que o próprio paciente mantenha seus dados de saúde para si. Além disso, há healthtechs que trabalham com inteligência artificial para agilizar diagnósticos, outras que trabalham com análises de dados dentro de uma operadora de saúde.
Como uma healthtech pode ampliar o acesso à saúde?
É uma questão importante em um país como o Brasil, com mais de 200 milhões de habitantes e onde apenas 40 milhões têm plano de saúde, ou seja, a grande maioria das pessoas acessa o Sistema Único de Saúde (SUS). As healtechs podem criar agendamentos, novas operadoras de saúde, permitindo a telemedicina. Quando a gente fala em ampliar o acesso, podemos pensar em uma pessoa que mora no interior, em uma cidade mais distante, e que terá a possibilidade de consultar por telemedicina.
E quanto a uma família que mora na zona rural, com acesso restrito à internet?
As novas tecnologias têm sido um grande auxílio para dar acesso à saúde em locais remotos, onde há menor acesso a médicos especialistas, por exemplo. Há uma healthtech americana, a Butterfly, que desenvolveu um aparelho de ecografia capaz de se conectar ao smartphone a um custo muito menor do que um aparelho tradicional. Além disso, tem possibilidade de transmitir as imagens por telemedicina. Claro que um treinamento e um profissional de saúde na outra ponta também são necessários. A própria telemedicina, que teve sua regulamentação criada durante a pandemia, também pode garantir um atendimento com especialistas em cidades com menos condições. Mas a internet, realmente, é determinante. É o canal para a expansão desses negócios.
A tecnologia vai substituir o médico? A inteligência artificial vai substituir o médico? É claro que não. Agora, o médico que usar as novas tecnologias pode, sim, ser um médico que vai prestar um atendimento mais amplo.
Não existe chance de as healthtechs se concentrarem em regiões mais ricas e urbanizadas?
Há relatórios que mostram que a concentração das heathtechs está nos grandes centros, como São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre e Florianópolis. Ao mesmo tempo, por serem escaláveis, as healthtechs podem prestar serviços para lugares do interior, para hospitais de localidades pequenas. É diferente do que se tinha antigamente, quando uma clínica era aberta em Porto Alegre e, para ir para o interior do Estado, precisava ter uma filial em outra cidade. Hoje, a tecnologia permite que os atendimentos e os serviços sejam prestados a distância.
Uma healthtech pode vir a colaborar com o Sistema Único de Saúde?
Com certeza. Existem diversos editais, tanto no Ministério da Saúde quanto no Ministério da Ciência e Tecnologia, para buscar empresas privadas e startups de tecnologia com novas soluções que possam estar em hospitais e unidades básicas de saúde.
A pandemia sobrecarregou o sistema de saúde. Por outro lado, acelerou a telemedicina.
A telemedicina foi totalmente regulamentada pelo Conselho Federal de Medicina em maio deste ano. Muitas pessoas, por receio do vírus, não procuraram os serviços médicos. Então a tecnologia veio para facilitar o acesso, já que o distanciamento não conseguia isso.
Os médicos estão sendo preparados para a telemedicina?
A pandemia provocou uma mudança, uma procura por soluções que favorecem a jornada do paciente, usando da tecnologia para um atendimento mais humano. É importante que o médico, desde a faculdade, possa saber lidar com esses novos conceitos, como inteligência artificial, telemedicina, inovação, isso para também poder criar soluções que possam agregar. Mas será que a tecnologia vai substituir o médico? Será que a inteligência artificial vai substituir o médico? É claro que não. Agora, o médico que usar as novas tecnologias pode, sim, ser um médico que vai prestar um atendimento mais amplo. A preparação para a telemedicina ainda está em evolução. Os atendimentos ainda se resumem a acompanhar os pacientes que estão em locais mais remotos. Por que um paciente tem que atravessar 200 quilômetros se pode fazer um acompanhamento remoto?
Não existe o risco de as consultas virtuais afastarem o médico do paciente, de tornarem esse atendimento cada vez mais impessoal?
É uma boa pergunta. Como tudo, tem que ter treinamento. O médico precisa manter suas características sempre: a empatia, o atendimento humanizado, seja de forma virtual, seja de forma presencial. É óbvio que a consulta virtual não vai substituir totalmente a consulta presencial. Colocar a mão, sentir o paciente são coisas que não vão mudar. Ao mesmo tempo, existe um número limitado de profissionais, então a tecnologia vem para ampliar o acesso. E a telemedicina consegue também dar um acompanhamento mais próximo, facilitando a vida do médico e a do paciente. Por que o paciente tem que levar um exame até o consultório médico? Por que não pode submeter em uma aplicativo? A telemedicina não vai, a partir de amanhã, tornar todas as consultas virtuais. O importante é que dará acesso a especialistas.
Existe tecnologia disponível para a pessoa fazer um ultrassom a distância (acoplando equipamento ao celular) e a imagem ser transmitida por 5G de forma mais rápida. Hoje existe até cirurgia robótica que pode transmitir dados e contar com o auxílio de profissionais de fora. O 5G vai agilizar muita coisa.
Além da telemedicina, como uma healthtech pode atuar?
Existem healthtechs que oferecem serviços de bem-estar. A pessoa baixa um aplicativo que avalia como foi o sono, ou se o usuário praticou exercícios físicos em quantidade ideal, ou que lembra a pessoa de tomar um medicamento no dia e no horário corretos. São aplicativos e plataformas que engajam o usuário a ter uma vida mais saudável. Isso também é um serviço de healthtech. E isso também é acesso à saúde. Há healtetechs que trabalham com doenças crônicas, como diabetes, por exemplo, permitindo que o paciente avalie constantemente sua glicose. Tudo isso melhora o engajamento do paciente com sua saúde e diminui as complicações. Healthtechs que cresceram muito foram as de prescrição digital. O médico prescreve no aplicativo, e a pessoa pode ir à farmácia com a prescrição pronta, em vez de carregar um papel, o que acaba com o risco de perder aquela prescrição escrita. Há diversas healthtechs que trabalham com isso. Isso tudo auxilia a vida do paciente.
Com tantas informações sobre o paciente em aplicativos, não existe o risco desses dados serem usados para publicidade?
A questão da segurança de dados para as healthtechs é restrita. Não se pode distribuir esses dados. A relação da empresa é com o paciente. Uma healthtech tem o propósito de cuidar dos dados do paciente, como qualquer outro serviço de saúde. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) regulamentou neste ano o uso de softwares médicos, que auxiliam no diagnóstico, que monitoram pacientes, e para eles há regras a serem cumpridas. O setor da saúde, por estar lidando com vidas, tem regulamentação forte. Uma healthtech tem que comprovar que seu serviço realmente melhora o diagnóstico, melhora o tratamento. Tem que comprovar isso. Não pode simplesmente colocar um serviço a disposição que não cumpre com o que diz que vai cumprir.
Há uma grande expectativa com o 5G no Brasil. Existe a chance de uma internet mais potente permitir exames a distância, como o ultrassom?
O próprio Google tem projetos nesse sentido, sim. Já existe ultrassom portátil que pode ser acoplado ao celular. Comparado ao preço de um ultrassom mais clássico, que custa de R$ 300 mil a R$ 400 mil, fica muito mais barato para um posto de saúde, por exemplo. Existe tecnologia disponível para termos aparelhos menores, que podem ser acoplados no celular, e a pessoa fazer um ultrassom a distância e a imagem ser transmitida por 5G de forma mais rápida. Hoje existe até cirurgia robótica que pode transmitir dados e contar com o auxílio de profissionais de fora. O 5G vai agilizar muita coisa. Tendo médico de ponta a ponta, e com pessoas capacitadas, podemos, sim, ter exames realizados a distância. Há healthtechs com inteligência artificial, que estão sendo avaliadas pela FDA (Food and Drug Administration, agência reguladora da saúde nos Estados Unidos), para tratar distúrbios de saúde mental. Você conversa com um algoritmo, que segue protocolos, e, a partir disso, encaminha o diagnóstico mais correto. Existem várias healthtechs que trabalham com inteligência artificial que fazem a triagem de doenças para encaminhar a pessoa a um especialista, ou seja, que facilitam o acesso ao atendimento médico especializado.
Que tipo de serviço de healthtech tem dado mais certo no Brasil e no mundo?
As consultar virtuais, que são a telemedicina, cresceram muito na pandemia. Serviços que prestam melhor atendimento ao paciente, respeitando a jornada de cada pessoa, também. Serviços que melhoram a eficiência operacional, com análises de dados de operadoras de saúde e até hospitais. Essas healthtechs cresceram bastante. Nos Estados Unidos, há uma healthtech bem conhecida, a 23andMe, que faz análises genéticas a partir de uma gota de saliva e pode indicar a predisposição de uma pessoa ter Alzheimer ou Parkinson. Há grandes empresas de telemedicina atuando lá fora, healthtechs que ajudam o paciente a encontrar o melhor médico, e também empresas que trabalham com doenças crônicas, como diabetes. Plataformas que pegam diversos profissionais e os entregam em serviços digitais.
Tem surgido startups de saúde no Rio Grande do Sul?
O Rio Grande do Sul é um polo de saúde muito importante. Temos hospitais que estão entre os melhores do Brasil, como o Moinhos de Vento, o Mãe de Deus, a Santa Casa de Misericórdia e o Hospital de Clínicas, além de faculdades de Medicina excelentes e muito bem conceituadas. Uma grande colaboração entre diversas entidades de saúde foi o South Collab Health, criado para promover a inovação. As faculdades, inclusive, estão criando disciplinas de empreendedorismo e inovação, coisa que não se via lá atrás. O Sebrae também trabalha com isso, assim como o Tecnopuc. Uma startup que merece destaque é a Webmed, que trabalha com algoritmos para identificar doenças de forma mais rápida, fazendo um a triagem por meio de um QR Code que dá acesso a uma série de perguntas. Há uma startup de saúde mental, a Cíngulo, que trabalha com o conceito do terapia digital guiada, segundo a qual o paciente pode buscar essas terapias no próprio aplicativo, permitindo que conheça melhor a si mesmo. Há ainda a startup Thummi, que também busca desenvolver ferramentas que permitem acompanhamento digital dos pacientes oncológicos, para que eles possam monitorar seus sintomas durante o tratamento.
Quais são os desafios para uma healthtech no Brasil hoje?
Nos últimos cinco anos houve um boom de investimentos, muitos investidores procurando healthtechs. Houve um crescimento inclusive de aporte financeiro das healthtechs. Também houve a pandemia, que acabou acelerando a implantação de plataformas digitais para acesso ao paciente. Mas a gente ainda tem dificuldade de acesso no país. Também há a questão regulatória. Mas o cenário é de total crescimento. É uma questão de mentalidade. Os hospitais estão mais abertos à inovação, os médicos estão adotando tecnologias para melhorar o atendimento a seus pacientes, as clínicas também estão trabalhando com esses conceitos. Até a indústria farmacêutica vem usando as healthtechs para elaborar novas drogas.
Muito se fala que a tecnologia pode reduzir custos na saúde. De que forma isso pode acontecer?
Trazendo eficiência operacional, análise de dados, evitando que seja atendido novamente. Os dados podem até prever complicações. Um paciente com seus dados na mão, que conhece sua saúde, que se apoia na tecnologia para cuidar da saúde, pode evitar problemas lá na frente. Evita infarto, complicação da diabetes. Isso tudo reduz custos e melhora a saúde de um paciente.
O Sesi Conecta Saúde
- Esta será a segunda edição do ciclo de palestras, um ano após a estreia do evento, em 2021. Desta vez, serão 11 conferencistas convidados, em uma série de encontros virtuais a serem realizados terça e quarta-feira, em sesiconectasaude.com.br. Tudo é gratuito e acessível de qualquer parte do país, mas é preciso inscrever-se previamente. Veja informações no mesmo site.
- Além de Cristiano Englert, falarão Alexandre Kalache (sobre longevidade), Andrew Solomon (saúde mental pós-pandemia), Christian Barbosa (gestão do tempo), Bianca Vilela (sono saudável), entre outros. Veja a lista completa no site.