Entre tantos setores da saúde impactados pela pandemia, que nos piores momentos obrigou a quase totalidade da concentração de esforços no atendimento da covid-19, o dos transplantes sofreu um dos maiores abalos no Brasil. Cirurgias em doadores e receptores foram suspensas por meses, o que provocou o aumento das filas de espera, o agravamento do quadro de pacientes e a alta do número de óbitos.
Dos órgãos e tecidos que podem ser transplantados, a córnea (tecido transparente que fica na frente da íris), de procedimento simples e frequente, representa bem como a turbulência do coronavírus complicou uma das áreas com melhor fluxo. O tempo de espera para receber córnea no Rio Grande do Sul, até 2019, era de, no máximo, dois meses, o que se chama de “fila zero” — o período serve mais para o receptor se organizar para a operação do que, de fato, esperar que apareça um doador. Hoje, pode chegar a um ano e quatro meses.
A comparação de 2019, ano anterior ao do início da crise sanitária, com os posteriores é ilustrativa: em 2020, por exemplo, a redução no número de transplantes de córnea foi de 67% no Rio Grande do Sul (de 726 procedimentos para 241), de acordo com a Central de Transplantes do Estado (veja gráfico). Houve recuperação em 2021, e especialistas apelam para a sensibilização da população para que o número de doadores aumente. Mesmo que o indivíduo manifeste, em vida, a vontade de se tornar doador, a palavra final é da família, autorizando ou não.
Para a retirada das córneas, a morte encefálica (perda irreversível das funções cerebrais) não é pré-requisito, o que aumenta o número de potenciais doadores. A partir da parada dos batimentos cardíacos do paciente, as equipes têm até seis horas para a captação. São impeditivos para a doação condições como HIV, hepatites B e C, leucemia, câncer no olho e doenças na córnea. Não é necessário haver compatibilidade sanguínea.
No Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), o primeiro ano da covid-19 também significou a queda mais acentuada nos transplantes de córnea: de 142 em 2019 para 39 em 2020, redução de 72%. Em 2021, como no Estado, também houve reação no HCPA (76 transplantes), e neste ano, até esta sexta-feira (8), em pouco mais de seis meses, 49 cirurgias já haviam sido realizadas.
De acordo com a médica oftalmologista Diane Ruschel Marinho, chefe da equipe de córnea e transplantes do Serviço de Oftalmologia do HCPA, cada doador pode beneficiar até seis pessoas (com duas córneas e quatro metades de escleras, a parte branca do olho). Como não é necessário que tenha ocorrido morte encefálica, a quantidade de potenciais doadores desse tecido é cerca de 10 vezes maior do que para transplante de órgãos.
Um dos principais obstáculos, segundo a especialista em córnea e transplante, é o temor, por parte dos familiares, de prejuízo estético ao cadáver.
— Existe uma certa fantasia de que o doador falecido vai ficar desfigurado, com a pálpebra murcha. Tiramos todo o globo ocular, mas o técnico é supertreinado. O espaço é preenchido, não tem risco de haver sangramento. Fica como se fosse o olho de antes — explica Diane.
Desconhecer o que o parente pensava a respeito da doação de órgãos acaba se tornando outro entrave.
— A grande dúvida é: “Eu nunca conversei com ele sobre isso”. Aí a família não autoriza a doação. Esse assunto precisa ser conversado. Fatalmente, algum de nós vai passar por uma situação dessas — diz a médica.
Chance de dar certo é de mais de 97%
Além da sobrecarga de atendimentos a doentes com covid-19 nos hospitais, com concentração de profissionais de saúde na linha de frente e suspensão ou restrição de outros serviços, a tarefa de desvendar o coronavírus levou tempo e impediu transplantes.
— Não se sabia direito o que poderia acontecer. Havia o temor de que o vírus fosse transmitido pela córnea. Hoje temos noção de que a possibilidade é muito remota — recorda a oftalmologista. — Claro que tomamos cuidados. Se o doador faleceu de doença respiratória aguda, já não vamos adiante na entrevista com a família porque pode ser covid. Mas, se é descartado o processo respiratório agudo na entrevista, se não teve contato com ninguém, é mais seguro, hoje, fazer essa captação — acrescenta.
Pacientes do HCPA continuaram entrando na fila enquanto os transplantes não eram realizados. Atualmente, seria preciso realizar o dobro das cirurgias feitas antes da pandemia para dar conta da fila. Ainda que o número esteja se normalizando, existe um passivo a ser superado, o que eleva o período de espera para quase um ano e meio.
Podem se beneficiar desse tipo de transplante pacientes com cegueira por problema na córnea — como o ceratocone, bastante prevalente — ou que tiveram o tecido machucado, entre outras condições.
— Uma característica muito peculiar é que a córnea não tem vasos sanguíneos. É um tecido muito bem aceito para transplante, com risco baixo risco de rejeição. A chance de dar certo é de mais de 97%. Está entre os transplantes que mais têm chance de dar certo — incentiva Diane.