O desenvolvimento de recursos para enfrentamento à pandemia de covid-19 não estacionou na criação das vacinas em uso atualmente, chamadas intramusculares. Outros métodos de combate ao coronavírus seguem em pesquisa pelo mundo afora. Um deles, ainda em fase de estudos, é tratado como possível aliado para colocar fim à crise sanitária: o imunizante em forma de spray nasal.
Nenhum país do mundo usa ainda vacinas nasais como estratégia de combate ao coronavírus, mas segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), o órgão monitora oito imunizantes em desenvolvimento: no Reino Unido, na China (duas), na Índia, em Cuba, no México, nos Estados Unidos e em Cingapura.
No Brasil, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) informou a GZH que não autorizou o uso desse tipo de tecnologia. Contudo, desde 2020, o Instituto do Coração (InCor) do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP) conduz uma pesquisa brasileira que busca desenvolver uma vacina em formato de spray nasal. O estudo pretende criar um imunizante que aja no sistema respiratório, gere resposta imune da região, e, por consequência, evite a infecção do indivíduo, o desenvolvimento e a transmissão da doença para outras pessoas, explica Jorge Kalil, responsável pelo trabalho.
— Pensamos que, para combater a infecção, e não apenas a doença, precisamos munir a região do nariz e da boca com anticorpos que nos defendam contra os vírus. Nem sempre a injeção intramuscular de uma vacina vai induzir anticorpos que protejam a mucosa, sobretudo as igAs (imunoglobulina A, proteína que atua na defesa do organismo presente na mucosa) — explica.
De acordo com o Kalil, pesquisas experimentais do projeto, conduzidas em camundongos, têm se mostrado eficazes, com altos níveis de anticorpos e resposta celular protetora.
— Imunizamos os animais e depois colocamos o vírus para ver se eles ficavam infectados, mas não: estavam bem protegidos contra a doença e contra a infecção. Mostramos isso em uma série grande de experimentos — afirma.
A vacina não foi testada em humanos até o momento. Esse processo será feito na etapa clínica da pesquisa, na qual será analisada a segurança, a resposta imune e o esquema vacinal (dose) mais adequado da população.
Mas, para isso, o andamento da pesquisa depende de investimentos.
— Para testar em gente, tenho que produzir essa vacina. Não é um problema universitário/acadêmico, mas industrial. Nós, no Brasil, não fizemos esse desenvolvimento, porque as indústrias (farmacêuticas) não fazem medicamentos novos, fazem o que já foi desenvolvido. Então, estamos vendo qual empresa no Exterior vai nos ajudar a fazer isso — explica Kalil.
O pesquisador é cauteloso quanto a prazos das próximas etapas do projeto, mas entende que o processo deve ficar mais rápido após a produção dos imunizantes e o início da etapa clínica, o que deve atrair investimentos. No momento, ele trabalha com a possibilidade de ter a vacina em spray pronta entre o segundo semestre de 2023 e início de 2024.
Anvisa disse ter recebido pedido de autorização para estudo clínico da vacina em spray desenvolvida pelo InCor em outubro de 2021. Após a análise da proposta, em 2 de novembro de 2021, a agência colocou o pedido em exigência - ou seja, a equipe técnica solicitou dados e informações complementares aos pesquisadores para que a análise do pedido de estudo pudesse ser feita.
Ainda de acordo com a Anvisa, a agência não recebeu resposta aos questionamentos técnicos e não houve nenhum outro contato por parte dos pesquisadores responsáveis desde então. Assim, não há nenhuma pendência de análise da Anvisa para o spray do Incor.
China e Cuba já realizaram testes em humanos
Dois dos imunizantes nasais em desenvolvimento monitorados pela OMS já tiveram resultados informados após aplicação em humanos.
Em 2021, a pesquisa conduzida na China informou, em dados preliminares, que a taxa global de proteção em casos sintomáticos, após 14 dias da aplicação, foi de 68,83%. A eficácia contra casos graves chegou a 95,47%. Depois de 28 dias, a proteção caiu para 65,28%, e, contra formas graves, para 90,07%.
Em maio deste ano, a imprensa de Cuba anunciou resultados dos estudos clínicos da Mambisa, vacina nasal desenvolvida pelo país. De acordo com o Centro de Engenharia Genética e Biotecnologia (CIGB), o imunizante quadruplicou os anticorpos contra o Sars-CoV-2 em mais de 70% dos voluntários do estudo. Além disso, os resultados preliminares indicaram que 80% dos voluntários atingiram os níveis de resposta imunológica esperados.
O site Clinical Trials, dos Estados Unidos - que publica informações sobre estudos na área da saúde em 200 países -, informa que há 16 pesquisas envolvendo a tecnologia nasal em andamento. Segundo o poral, esses trabalhos são desenvolvidos nos Estados Unidos, Índia, México, Reino Unido, Austrália, Taiwan, China, Canadá.
Por que as vacinas atuais não podem ser usadas de forma nasal
As vacinas atuais, intramusculares, disponíveis contra a covid-19 têm tecnologias e objetivos diferentes do que é pensado para o imunizante nasal. A primeira diferença é a forma de aplicação: uma é feita por meio de uma injeção no braço, a outra, administrada pelo nariz. E as formas como combatem o vírus deixam mais claro as diferenças entre elas.
— As vacinas (disponíveis hoje) induzem a produção de anticorpos circulantes para a proteção contra a inflamação de órgãos, que, no caso da covid-19, é o pulmão. A de spray é administrada diretamente na mucosa nasal e é desenhada para diminuir a transmissão e excreção do vírus na via aérea superior — esclarece Alexandre Schwarzbold, professor da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e membro consultor da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI).
A (vacina) de spray é administrada diretamente na mucosa nasal e é desenhada para diminuir a transmissão e excreção do vírus na via aérea superior.
ALEXANDRE SCHWARZBOLD
Professor da UFSM e membro consultor da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI)
A vacinas nasais são raras no mundo. Schwarzbold cita o exemplo de uma usada contra o vírus influenza (gripe), chamada Fluminst Quadrivalent, da AstraZeneca, destinada a pessoas entre dois e 49 anos, nos Estados Unidos:
— O problema é a dose do nasal. Ter a evidência de que a dose é eficaz e segura demanda mais tempo do que toda a tecnologia que temos das vacinas intramusculares, que conseguimos tatear melhor a dosagem certa e segura nos estudos iniciais (durante o desenvolvimento do imunizante). No caso da pandemia, se ficássemos esperando para desenvolver uma vacina nasal, teríamos perdido muito tempo.
Vacina nasal pode significar o fim da pandemia de covid-19?
As vacinas em uso atualmente contra a covid-19 têm sido responsáveis por evitar mortes e internações em todo o mundo, mas não foram capazes de terminar com a pandemia até o momento. O motivo, segundo entendimento do médico infectologista André Luiz Machado, do Hospital Nossa Senhora da Conceição (HNSC) de Porto Alegre, é o escape imunológico dos modelos atuais. Como exemplo, ele cita a variante Ômicron, capaz de infectar mesmo indivíduos imunizados. A esperança é de que a versão nasal acabe com esse problema. Mas Machado é cauteloso:
— É cedo para afirmar que é o caminho definitivo para colocar fim na pandemia. É uma vacina que tem um grau adequado de proteção nos estudos e, no racional teórico, parece que contribui em reduzir a transmissão do vírus naqueles que foram imunizados. Mas precisamos colocar em prática, de forma mais ampla, para avaliar o comportamento dela contra o coronavírus e as variantes.
Ainda que não tenham acabado com a pandemia, não significa que a população deva deixar de usar os imunizantes disponíveis neste momento, reforça o médico do Conceição:
— É indubitável o fato de que as vacinas trouxeram benefícios significativos para a população. A imunização e os reforços diminuem a mortalidade e são importantes para aumentar os níveis de proteção e evitar as formas graves da doença.
Schwarzbold, da UFSM, entende que a vacina nasal será um aliado para combater a covid-19, mas também adora cautela quanto a prazos para a disponibilização do imunizante à população e mesmo aos resultados.
— É um caminho importante para o fim do que qualificamos de epidemia e, no caso mundial, de pandemia. Mas isso é dependente da eficácia dela em estudo clínico, algo que praticamente não se iniciou no Brasil e está em fase inicial em outros países. Provavelmente, vai demorar dois anos para ter essa resposta — diz.
O especialista afirma que é importante que a vacina em spray nasal apresente eficácia que se aproxime de 90%, caminho que ele chama de ideal para atingir a "imunidade de rebanho" e um dos mais importantes para o fim da pandemia, aliado às vacinas disponíveis e às medidas não farmacológicas, como uso de máscara e isolamento de infectados.
Medicamento em spray não avançou
Em fevereiro de 2021, o presidente Jair Bolsonaro (PL) demonstrou interesse em uma pesquisa conduzida no Hospital Ichilov, em Israel, para uso do EXO-CD24 - medicamento desenvolvido para tratamento de câncer nos ovários que os profissionais queriam usar em formato de spray no combate à covid-19.
Bolsonaro, acompanhado por uma delegação brasileira, chegou a viajar a Israel, onde teve encontros com autoridades do país e o centro responsável pela pesquisa do spray nasal. Contudo, nenhum acordo foi assinado entre os países para adquirir o spray, tampouco foi firmada parceria para o desenvolvimento do medicamento. A Anvisa informou à reportagem que não há estudo clínico autorizado para o EXO-CD24 no Brasil no momento.
De acordo com o site Clinical Trials, a pesquisa do EXO-CD24 ainda está em fase de recrutamento e não há resultados indicados na plataforma nem atualização do processo desde março de 2021.
No fim de 2021, outro medicamento em spray contra a covid foi pauta no país: o Taffix. Produzido pela empresa israelense Nasus Pharma, teve o registro autorizado pela Anvisa em dezembro. No entanto, no mês seguinte, a agência cancelou a autorização, sob a justificativa de falta de estudos que comprovassem a eficácia do produto.