O Superior Tribunal de Justiça (STJ) retomará, a partir das 13h desta quarta-feira (23), o julgamento de dois recursos sobre a lista de procedimentos de cobertura obrigatória por planos de saúde no Brasil. A votação vai definir se o chamado Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde, instituído pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), é exemplificativo ou taxativo, ou seja, se as empresas podem ou não ser obrigadas a cobrir procedimentos que não estejam inclusos na relação da ANS.
O julgamento teve início em setembro de 2021, porque a terceira e a quarta turma do órgão divergem sobre o tema, mas foi suspenso quando a ministra Nancy Andrighi, que defende que o rol sirva apenas de exemplificação, pediu para analisar melhor o processo.
Antes disso, de acordo com o STJ, o ministro Luis Felipe Salomão, que é o relator dos recursos, já havia votado para que os planos cubram apenas aquilo que está na ANS (taxativo), defendendo que a lista tem como objetivo proteger os beneficiários, “assegurando a eficácia das novas tecnologias adotadas na área da saúde, a pertinência dos procedimentos médicos e a avaliação dos impactos financeiros para o setor”.
Consumidores reclamam que a lista não é suficiente e que muitos tratamentos necessários acabam não sendo contemplados. Só em 2019, ocorreram 112.253 demandas judiciais de direito do consumidor envolvendo planos de saúde. No total, o Brasil tem cerca de 48 milhões de beneficiários desses convênios.
Para entender
- Taxativo: rol de procedimento deve ser seguido à risca, sem a obrigação de cobrir mais nada do que listado pela ANS. Sem possibilidade de judicialização.
- Exemplificativo: podendo ser extrapolado, servindo apenas de referência para a cobertura obrigatória. Em caso de negativa pelo plano, a judicialização é possível.
- Na prática, ao se tornar taxativa, a mudança no caráter da lista daria às operadoras de planos de saúde o direito de negar aos pacientes tratamentos que ainda não façam parte da lista da ANS, mesmo que tenham sido prescritos por médicos e tenham comprovada eficácia.
- A decisão pode alterar o entendimento histórico dos Tribunais do país, que há mais de 20 anos são predominantemente favoráveis a uma interpretação mais ampla, considerando a lista de procedimentos como referência mínima ou exemplificativa.
Simone Macedo, advogada especialista em Direito Empresarial do Escritório Siegmann Advogados, explica que a Segunda Sessão do STJ julgará os embargos de divergência em recurso especial com o objetivo de estabelecer se a definição do rol, que é considerado taxativo pela Resolução Normativa 465, de 24 de fevereiro de 2021, da ANS, segue desta forma ou passa a ser exemplificativo.
Por meio de nota, a agência reguladora destacou que sua competência para definir a lista de coberturas obrigatórias dos planos de saúde está estabelecida pela Lei nº 9.961/2000 e que não houve mudança em seu posicionamento de que, para fins de cobertura, “considera-se taxativo o Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde disposto nesta Resolução Normativa e seus anexos”. No entanto, afirmou que as operadoras de planos podem oferecer cobertura maior do que a obrigatória, “por sua iniciativa ou mediante expressa previsão no instrumento contratual referente ao plano privado de assistência à saúde”.
A jornalista e ativista Andréa Werner, que é fundadora do Instituto Lagarta Vira Pupa, afirma que, durante muito tempo, a lista de procedimentos previstos pela ANS foi considerada pela jurisprudência como “o mínimo que os planos de saúde deveriam oferecer”. Assim, caso um médico receitasse um exame, medicamento ou terapia que não estivesse no rol, o paciente costumava conseguir na Justiça que o plano cobrisse, já que o entendimento era que a lista era exemplificativa.
— Se virar taxativo, você não conseguirá mais judicializar para poder ter algum tratamento ou medicamento que o médico receitar. Se não estiver nesse rol da ANS, vai virar o entendimento jurídico superior a respeito.
Segundo Andrea, se o entendimento for pelo taxativo, pessoas com deficiência, doenças crônicas raras ou graves e com câncer, por exemplo, serão as mais afetadas.
— Geralmente, o que o rol tem são os procedimentos mais básicos e mais baratos. [...] É um rol arcaico, que vem sendo atualizado a cada dois anos e que não acompanha as evoluções da ciência e muitas questões ali tem mais a ver com o custo do que com a efetividade do procedimento em si — diz.
O que dizem Idec e Abramge
Para a coordenadora do programa de Saúde do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), Ana Carolina Navarrete, a definição do rol da ANS como taxativo vai "gerar um risco muito grande de os planos de saúde negarem coberturas necessárias e de efetividade comprovada". Além disso, ela afirma que o próprio rol não se baseia apenas na efetividade dos tratamentos para os pacientes, mas também na lucratividade das empresas.
— Ou seja, não entra qualquer tecnologia que seja boa ou custo-efetiva. Ela também não pode ser muito cara. E isso coloca o rol em situação de equilíbrio muito difícil — comenta.
A coordenadora também considera como inválido o argumento de desequilíbrio econômico da parte dos planos de saúde:
— Esse entendimento é assim há pelo menos 10 anos e isso não gerou colapso.
Segundo uma das advogadas do caso em julgamento, Caroline Salerno, pessoas com deficiência estarão entre as principais afetadas.
— Além de abordar a questão do rol, (o julgamento) deveria ser analisado na perspectiva da proteção à pessoa com deficiência, nesse microssistema jurídico que é mais sensível e vulnerável — alega.
O impacto é considerável ainda entre pacientes com doenças graves, como câncer ou epilepsia.
A Associação Brasileira de Planos de Saúde (Abramge) afirmou que a consideração do rol da ANS como exemplificativo é desafiadora e cria um ambiente de judicialização que impossibilita a previsibilidade na atuação das operadoras. "Formular o preço de um produto sem limite de cobertura, que compreenda todo e qualquer procedimento, medicamento e tratamento existente, pode tornar inviável o acesso a um plano de saúde e colocar a continuidade da saúde suplementar no Brasil em xeque."
A Unimed, parte de uma das ações, declarou que "a definição clara das coberturas obrigatórias, de forma taxativa, garante segurança jurídica aos contratos e evidencia direitos e obrigações na relação entre beneficiários e operadoras".
O professor de Direito Administrativo da UERJ Gustavo Binenbojm também defende um rol taxativo. Para ele, a judicialização dos casos é uma "falsa solução", porque cria um desequilíbrio para os planos, favorece apenas as pessoas que vão à Justiça e acarreta em um reflexo nos preços.
— A melhor solução seria uma que respeite o equilíbrio dos valores da segurança jurídica e do respeito aos contratos de um lado, e do acesso à saúde de ponta do outro lado — afirma.
Ele considera que casos como os que vão para a Justiça hoje deveriam ser objeto de consideração por parte da ANS, durante a atualização semestral do rol.