Há uma discussão no meio jurídico sobre a vacinação das crianças e adolescentes contra a covid-19: pais e demais responsáveis que deixarem de levá-los aos postos de saúde podem ser penalizados? Enquanto alguns especialistas entendem que sim, outros são mais cautelosos, já que o imunizante contra o coronavírus ainda não consta no Plano Nacional de Imunizações (PNI).
Mas há um consenso: receber as vacinas é um direito das crianças e dos adolescentes, previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que não pode ficar sujeito ao que os adultos pensam sobre esse ou aquele imunizante. O artigo 14 do ECA, em seu primeiro parágrafo, diz que a vacinação dos menores, quando recomendada pelas autoridades sanitárias, é obrigatória.
As medidas que o estatuto prevê são advertência, multa ou até a suspensão do poder familiar, que é a retirada da guarda. Se as duas primeiras podem ser inócuas e não garantir a imunização, tirar a criança do convívio com os pais pode ser muito radical, de acordo com especialistas ouvidos pela reportagem.
Entenda a divergência
No mesmo dia em que autorizou o uso da Pfizer para a faixa dos cinco aos 11 anos, em dezembro do ano passado, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) teceu uma série de orientações ao Ministério da Saúde, ressaltando a importância de garantir a proteção dos pequenos contra a covid-19.
No entanto, o Ministério da Saúde ainda não incluiu a vacina contra a covid-19 no Plano Nacional de Imunizações (PNI), somente no Plano Nacional de Operacionalização da Vacina contra a Covid-19 (PNO), que orienta, neste momento da pandemia, a ordem de prioridade para a imunização contra o coronavírus.
Mas é o PNI que organiza o calendário nacional, citando todos os imunizantes obrigatórios e informando quando devem ser aplicados pelo Sistema Único de Saúde (SUS). E é isso o que divide o meio jurídico: a partir de qual orientação fica estabelecida a obrigatoriedade da imunização: Anvisa ou PNI.
— O que estamos discutindo, em termos jurídicos: uma coisa é essa recomendação da Anvisa, outra é o Ministério da Saúde, que ainda não colocou a vacina contra a covid-19 no PNI para que se torne obrigatória. Essa é a discussão — frisa a promotora Inglacir Delavedova, titular da 7º Promotoria de Justiça da Infância e Juventude de Porto Alegre do Ministério Público do Rio Grande do Sul (MP-RS).
Na interpretação do desembargador José Antônio Daltoé Cezar, da 8ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS) e presidente da Associação Brasileira de Magistrados da Infância e da Juventude (Abraminj), não é necessário que a vacina contra a covid-19 entre no PNI para que pais e demais responsáveis sejam obrigados a levar crianças e adolescentes para a fila da injeção.
No Brasil, nossa autoridade sanitária é a Anvisa. A vacinação não é facultativa.
JOSÉ ANTÔNIO DALTOÉ CEZAR
Desembargador da 8ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS)
— A vacinação é obrigatória quando houver recomendação das autoridades sanitárias, e a Anvisa já fez isso em relação à vacina contra o coronavírus. No Brasil, nossa autoridade sanitária é a Anvisa. A vacinação não é facultativa, é obrigatória — opina.
Com experiência na área de saúde coletiva de crianças e adolescentes, a promotora Inglacir entende que, à Anvisa, cabe analisar de forma técnica a qualidade de uma vacina; ao Ministério da Saúde, dizer qual será obrigatória. Na visão dela, a dúvida sobre a penalização dos pais antivacina não existiria com outros imunizantes amplamente conhecidos e já incluídos no PNI, como a BCG, que protege contra a tuberculose.
— A vacina contra a covid está numa zona cinzenta. Não tem como ajuizar uma ação se um pai não deu uma vacina que não está no PNI. Se fosse uma BCG, não restaria dúvidas de que o pai seria penalizado, porque consta como obrigatória — considera.
Vacinação será fiscalizada, e sociedade pode denunciar
O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Ricardo Lewandowski se baseou no ECA para determinar, na quarta-feira (19), que os Ministério Públicos Estaduais de todo o país acompanhem o andamento da vacinação de crianças e adolescentes. Com essa pressão, deve haver fiscalização.
— O ministro Lewandowski ordenou que o Ministério Público corra atrás, que não fique parado. Os promotores terão de tomar providências, se organizar, entrar em contato com as escolas, estabelecer formas de fiscalização. Não vai dar para ficar no "não sabia" — diz o professor de Direito Civil Eduardo Tomasevicius Filho, da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).
Tirar a guarda é muito drástico.
EDUARDO TOMASEVICIUS FILHO
Professor de Direito Civil da USP
Especialista no ECA, Tomasevicius Filho lembra que é da sociedade a responsabilidade de garantir o bem-estar de crianças e adolescentes. Portanto, é possível denunciar pais e responsáveis que não quiserem vacinar os menores, acionando o Conselho Tutelar ou o mesmo o Ministério Público.
Após a advertência e a multa, o ECA prevê a retirada da guarda da criança. Porém, tirar uma criança do convívio da sua família pode ser muito radical.
— Tirar a guarda é muito drástico. O que pode acontecer, no caso da vacinação contra a covid-19, é suspender o poder familiar temporariamente e nomear um guardião que vá levar a criança para se vacinar. Uma vez vacinada, a criança retorna à família. Não é a melhor solução — observa.
Na avaliação da promotora Inglacir Delavedova, a retirada da guarda só pode acontecer se, a partir da fiscalização do Conselho Tutelar ou do Ministério Público, forem verificados outros prejuízos à criança e ao adolescente, para além de não estarem vacinados contra o coronavírus.
— Se for só a questão vacina, é possível dar um prazo para os pais levarem a criança se vacinar. Se não for cumprido dentro do prazo, pode ser tomada uma medida intermediária, como uma busca e apreensão da criança. Perda temporária de guarda, somente no caso de outras violações de direito. Seria uma medida muito drástica, uma violência contra a criança, que seria afastada da família — considera.
Criança é sujeito de direito
É uma questão de saúde. A criança é um sujeito de direito, não objeto de posse dos pais.
PROMOTORA INGLACIR DELAVEDOVA
Titular da 7º Promotoria de Justiça da Infância e Juventude de Porto Alegre do MP-RS
O que os adultos precisam entender é que, não importa de que lado estão, estar devidamente imunizado é um direito dos jovens, garantido no ECA.
— Não é direito do pai decidir a respeito da vacinação, nem do representante legal. Que as pessoas pensem diferente, é natural. Mas há muita desinformação e muita, muita raiva — observa o desembargador Daltoé, do TJ-RS.
Ficar limitado ao que se acha sobre as vacinas, sem considerar o que diz a lei e o que descobriu a ciência, é insustentável, observa o professor Tomasevicius Filho:
— A vacinação é um direito da criança, e não dos pais da criança. Nesse sentido, argumentos como "sou eu que decido se vacino meu filho" caem por terra — diz.
A promotora Inglacir Delavedova vai além:
— Se a criança está hospitalizada, precisando de transfusão de sangue, mas a religião da família não permite, pode haver uma autorização judicial que garanta essa transfusão. É uma questão de saúde da criança. A criança é um sujeito de direito, não objeto de posse dos pais — defende.