Antes da covid-19, a empreendedora Elisa Corrales, 42 anos, se dizia “super ativa”. Sem histórico algum de problemas respiratórios, nadava, dançava e tinha força invejável nas pernas. Depois da doença, demorou mais de um mês para conseguir apenas manejar uma vassoura. Em meio a sessões de terapia, toma medicação para diabetes e depressão. Relata ainda um sentimento curioso: a culpa.
— Eu perdi um tio para a covid e surgiram os questionamentos. Por que ele morreu e eu vivi? Ali foi necessário tomar remédio para voltar a ter ânimo — conta.
Elisa está longe de estar sozinha. De acordo com os profissionais de saúde do ambulatório pós-covid de Porto Alegre, localizado no Centro de Saúde IAPI, no bairro Passo D’Areia, grande parte dos pacientes que venceram suas batalhas contra a covid-19 hoje convivem com traumas físicos e psicológicos.
— As pessoas vêm às sessões com relatos parecidos, e eu percebi no comportamento delas sintomas de transtorno de estresse pós-traumático (TEP). É um transtorno de ansiedade, de pessoas que vivenciaram situações de extrema violência e agressividade de forma lenta, crônica, pessoal ou até indireta, de quem testemunhou casos — aponta Luana Bordin Lauffer, psicóloga do ambulatório.
Conforme Luana, cada paciente absorve e entende o trauma a sua maneira. Em comum, eles têm a tentativa da psique de “reequilibrar de forma exaustiva algo que rompeu”.
— As pessoas não pediram para ter covid-19 e isso os tirou da rotina, roubou eles da própria vida. O comportamento das pessoas pós-covid tem muito a ver com sobreviventes de guerra — diz.
Desde que foram iniciados os atendimentos, em 12 de julho, os sintomas mais relatados no ambulatório de reabilitação são cansaço, ansiedade e insônia. De acordo com a fisioterapeuta e coordenadora do ambulatório, Aline Casaril, a dificuldade em conseguir retomar as atividades antigas causa ansiedade e estresse na maioria dos que buscam a reabilitação.
— A nossa recomendação é observar o que mudou na rotina após ter pego coronavírus, procurar o posto de saúde do seu bairro e levar as queixas ao profissional de saúde, para que se inicie o acompanhamento e tratamento das sequelas — descreve Aline.
Além de fisioterapia e atendimentos psicológicos, o serviço conta com enfermagem, fonoaudiologia, acupuntura, nutrição e osteopatia.
Enquanto realizam os atendimentos, dentro ou fora do ambulatório, os próprios profissionais de saúde vão aprendendo a lidar com os desafios do pós-covid, alguns ainda de causa enigmática. Segundo o médico infectologista e especialista em Controle de Infecção no Hospital Moinhos de Vento, Paulo Ernesto Gewehr Filho, ainda não se sabe o porquê de algumas das sequelas.
– O que se sabe até o momento é que a inflamação causada pela covid provoca uma resposta imunológica que a gente chama de inflamação, e essa inflamação libera vários hormônios para combater o vírus e organizar as respostas imunológicas. A inflamação também pode atrapalhar o funcionamento do organismo em determinados locais, então a gente não sabe ainda se é efeito direto do vírus que provoca essas alterações ou se é a resposta contra o vírus que acaba prejudicando o próprio organismo – explica o médico.
Alta necessidade de acompanhamento contrasta com baixa procura
Conforme a coordenadora do ambulatório, a procura pelo serviço está em queda e há vagas de sobra. Poderia ser uma boa notícia, mas preocupa os profissionais de saúde que o ambulatório não venha sendo procurado em razão do desconhecimento da gravidade das sequelas e da possibilidade de tratamento.
— Nos meses de agosto e setembro, houve uma entrada muito grande de pacientes, mas no final de novembro começou a diminuir. Grande parte dos pacientes que estão em atendimento são os que tiveram covid no pico da pandemia, ali por março, abril e maio. Se no auge muitas pessoas estavam contaminadas e apenas uma parte buscou o tratamento, hoje o percentual cai ainda mais porque nem todos sabem das sequelas ou buscam atendimento — aponta Aline.
A recomendação dos profissionais de saúde é de que todas as pessoas que tiveram coronavírus observem sintomas e diferenças nas suas rotinas e busquem atendimentos caso percebam diferença de comportamento. No momento, o ambulatório tem capacidade de realizar até 70 atendimentos por semana, de segunda a sexta-feira, das 13h às 17h. Quem desejar tratar as sequelas da covid longa deve comparecer a um posto de saúde do seu bairro, relatar o que está sentindo ao profissional e, caso seja necessário, será feito o encaminhamento ao ambulatório do IAPI.
— Se está com dificuldade de retomar as suas atividades, começou a fazer o seu trabalho e não está dando conta porque tem de parar, sentar, se várias vezes não consegue sequer terminar o almoço, isso pode ser sequelas da covid — recomenda Aline.
A convicção de que o foco no pós-covid é importante é tamanha que, independentemente da pouca demanda pelo serviço, o ambulatório oferecerá, a partir de março de 2022, 130 atendimentos por semana. Isso será possível com o retorno dos acadêmicos e professores dos cursos de Fisioterapia da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA) e de Fisioterapia, Enfermagem, Psicologia e Nutrição da Unisinos.
O objetivo é ter cada vez mais pacientes como Valdelirio do Prado, 53 anos. Após contrair covid-19 em novembro de 2020, ele chegou a ser convidado a se despedir dos seus familiares e entubado por 40 dias. Livre do vírus, ele comparece todas as quintas-feiras ao ambulatório desde setembro passado empenhado em voltar a ser o homem de saúde invejável que nunca havia pisado em hospital.
— Pode aparecer qualquer compromisso, eu não falto. Faço os exercícios que eles mandam fazer também. Quando cheguei aqui, caminhava muito mal. Hoje estou bem melhor. Recomendo às pessoas buscarem ajuda e procurar vencer cada dia, não se entregar. O que me ajudou foi o apoio da família, meus netinhos, isso dá vida para a gente. A gente tem que entender que os profissionais querem nos ajudar, mas eu também tenho que fazer a minha parte. Mudou tudo, mas graças a Deus estou vivo — conta.